sábado, junho 09, 2007

Feliz até doer

Felicidade não tem manual, mas acertando e errando a gente constrói nossa cartilha de crenças. Somos na essência sozinhos e livres Eu tinha dez anos e era um moleque que só se preocupava em jogar bola.
Enquanto meninas da minha idade colecionavam papéis de carta e brincavam de boneca, eu vivia suja, suada e cheia de hematomas pelo corpo - cortesia do tratamento igualitário de meus colegas boleiros. E nesse doce ritmo ia a vida, até o dia em que conheci meu primeiro trauma. Durante uma briga com meu irmão caçula ouvi de minha mãe: "Pare de brigar com ele. Ele não tem culpa se você não é homem".
E a realidade bateu à minha porta. Foi o dia em que eu entendi que ser diferente não era normal. E que talvez eu, de fato, não fosse quem gostaria de ser. A partir de então, todas as noites eu ia para a cama me questionando se queria ser meu irmão. Ou se queria ser homem. Só encontrei a resposta no dia 12 de dezembro de 1983, quando beijei minha melhor amiga na boca. Não, eu não queria ser homem. Queria apenas poder amar outras mulheres e demonstrar meu amor fisicamente. Mas isso parecia impossível num mundo no qual a cartilha moral nos manda casar e, na seqüência, ter, de preferência, um casal de filhos. Se além disso conseguirmos colocar dois carros na garagem e um cachorrinho na sala, bingo, tudo o que esperavam de nossa jornada terá sido devidamente conquistado. E, aos olhos do mundo, seremos felizes.
Mas minha existência, desde muito cedo, não seguiu nenhum manual já criado. Com o tempo descobri que a vida, felizmente, não é previsível como um filme da Disney. Crescemos, mas levamos com a gente todos os traumas da infância. Viramos adultos, por mais bem resolvidos, cheios de dores e feridas. Passamos a vida em busca de repetir as sensações da adolescência, quando as amizades eram descompromissadas, as baladas não tinham hora para acabar, e os amores, arrebatadores. Quando os cortes mais profundos podiam ser sentidos na carne, sem pressa de cicatrizar. Quando dormir depois da Sessão da Tarde era aceitável. Solidão de sábado à tarde
Olho em volta e vejo meus amigos aos 30 e poucos. As paixões verdadeiras e arrebatadoras são raras, e, quando vêm, vêm cheias de complexos e desencontros. Solidão de sábado à tarde. Tentamos lamber as feridas para que elas não sangrem aos olhos alheios. Esperam muito de todas nós: é preciso ser forte, elegante, bonita, bem-sucedida, casada, ter filhos, cuidar da casa. É preciso que sejamos várias em uma só, e falhar em alguma dessas tarefas pode comprometer todas as outras. O diabo é que já provamos que somos capazes da multiplicidade, mas estamos chegando à conclusão de que não queremos passar a vida sapateando entre o cabeleireiro, a escola do filho, a reunião de trabalho e a satisfação sexual do companheiro. Queremos apenas ter o direito de sangrar no nosso canto, sem audiência, sem platéia, quando a dor bater forte. Queremos nos apaixonar e poder tirar férias para curtir a paixão, ou a dor da separação. Queremos apresentar um projeto de lei que permita aos apaixonados e aos recém-abandonados não trabalhar por seis meses, ou mais. Queremos entender que a felicidade não é o destino, mas a viagem. Que ela se encontra na mesa de um bar qualquer, num fim de tarde qualquer, jogando conversa fora com amigos sinceros. Que mora no abraço apertado de um sobrinho, em uma rede que balança compassadamente na varanda de um apartamento no coração da maior cidade do Brasil ao cair da noite, no beijo da pessoa amada, num fim de semana na praia com amigos antigos. Que a felicidade é saber, finalmente, quem somos e o que queremos fazer aqui. E que buscar nossas verdades individuais, por mais distantes que elas estejam, é o grande barato dessa jornada. Que existe um tipo de felicidade nas brigas, cheias de mágoa e de dor, com quem amamos. Que é possível crescer no sofrimento. Que por vezes a vida vai ficar tão cinza e sem graça que a vontade de desistir vai nos sufocar. E que, nesses dias, sonhar não será possível. Mas que todos passam por momentos de desespero. E que a felicidade será resgatada em novos sonhos. Por que não nos deixam cair?
Olho em volta e vejo meus amigos crescidos, mas andando de mãos dadas com as crianças que foram. Gostaríamos de ter aquele adulto de segurança na nossa cola, aquele que vai, todo curvado e atento. Uma simples ameaça de tropeço, e a mão está pronta para o resgate. A partir daí, para sempre precisaremos saber que seremos amparados a cada tropeço. E essa infernal necessidade de segurança aniquila nossa liberdade. Por que não nos deixam cair? Somos, antes de mais nada, animais livres, e a liberdade é, para cada um de nós, mais visceral do que a segurança. Ou deveria ser. Porque a vida é feita de levantar, lamber a ferida e seguir. Não estaria a felicidade na coragem de trocar segurança por liberdade? Na ousadia de abrir mão de convenções e detritos morais pelo que queremos ser e viver de verdade? Em um simples beijo, roubado em um domingo de manhã, da mulher que se ama na mesa da padaria? Em receber, no meio de uma reunião chata, uma mensagem pelo celular com apenas três palavras que vão nos fazer sorrir?
Felicidade é dançar sozinha na sala sem ninguém por testemunha, sem motivo aparente. É pedir demissão quando o tesão acabar, mesmo sem ter outro emprego. É fracassar e não ter vergonha de admitir, simplesmente porque não existe quem nunca tenha fracassado. É saber que somos fracos e pequenos, e, ao mesmo tempo, fortes e gigantes. Que somos biologicamente idênticos, e por isso não existe entre nós os que são melhores e os que são piores. Mas também saber que somos absolutamente diferentes uns dos outros. E que a beleza está nesses pequenos espaços que nos distinguem, e não no que temos em comum.
Felicidade é se deixar levar pelo coração e fazer com que a cabeça seja subordinada a ele, e não o contrário. É não se prender à tradição, é questionar a moral do mundo, um mundo cujos valores são tão tortos que é capaz de limitar e punir o amor, mas não a guerra.
Felicidade é entender que andamos todos pela rua, numa segunda-feira qualquer, machucados, feridos, torturados. Que somos bichos cheios de traumas. Que cada um de nós possui um segredo mais dolorido que o outro. Mas que não existe vida sem dor. Pelo menos não o tipo que valha a pena ser vivida. Felicidade é olhar no espelho e ver nosso rosto envelhecer. Com todas as marcas que nele cabem. E entender que envelhecer é a única opção agradável. Porque a outra, convenhamos, me parece bem pior. E, já que a viagem é curta, é preciso arriscar. Sempre. E saber que não existe um manual que nos ensine a ser feliz. Mas que, sofrendo, amando e arriscando, estamos construindo nossa cartilha de crenças. Uma cartilha que é individual. E que, mais cedo do que tarde, ela nos libertará. Porque somos, na essência, sozinhos e livres.

A carioca Milly Lacombe, 39 anos, é jornalista, canceriana, tem ascendente em touro e não faz idéia de onde estava a Lua quando nasceu. Seu e-mail é milly@trip.com.br
Depois de um bom tempo dizendo que eu era amulher da vida dele, um belo dia eu recebo um e-mail dizendo: "olha, nãodá mais".
Ta certo que a gente tava quase se matando e que o namoro já tinha acabado mesmo, mas não se termina nenhuma história de amor(e eu ainda o amava muito) com um e-mail, não é mesmo?
Liguei pra tentar conversar e terminar tudo decentemente e ele respondeu:"mas agora eu to comendo um lanche com amigos".
Enfim, fiquei pra morrer algumas semanas até que decidi que precisava ser uma mulher melhor para ele.Quem sabe eu ficando mais bonita, mais equilibrada ou mais inteligente, ele não volta pra mim?Foi assim que me matriculei simultaneamente numa academia de ginástica, num centro budista e em um curso de cinema.
Nos meses que se seguiram eu me tornei dos seres mais malhados, calmos, espiritualizados e cinéfilos do planeta.
E sabe o que aconteceu? Nada, absolutamente nada, ele continuou não lembrando que eu existia.
Aí achei que isso não podia ficar assim, de jeito nenhum, eu precisava ser ainda melhor pra ele, sim, ele tinha que voltar pra mim de qualquer jeito.
Decidi ser uma mulher mais feliz, afinal, quando você é feliz com você mesma, você não põe toda a sua felicidade no outro e tudo fica mais leve.Pra isso, larguei de vez a propaganda, que eu não suportava mais, e resolvi me empenhar na carreira de escritora, participei de vários livros, terminei meu próprio livro, ganhei novas colunas em revistas, quintupliquei o número de leitores do meu site e nada aconteceu.
Mas eu sou taurina com ascendente em Áries, lua em gêmeos e filha única!
Eu não desisto fácil assim de um amor, e então resolvi que eu tinha que ser uma superultra mulher para ele, só assim elevoltaria pra mim.Foi então que passei 35 dias na Europa, exclusivamente em minha companhia, conhecendo lugares geniais, controlando meu pânico em estar sozinha e longe de casa, me tornando mais culta e vivida.
Voltei de viagem e tchân, tchân, tchân, tchân: nem sinal de vida.
Comecei um documentário com um grande amigo, aprendi a fazer strip, cortei meu cabelo 145 vezes, aumentei a terapia, li mais uns 30livros, ajudei os pobres, rezei pra Santo Antonio umas 1.000 vezes, torrei no sol, fiz milhares de cursos de roteiro, astrologia e história,aprendi a nadar, me apaixonei por praia, comprei todas as roupas mais lindas de Paris.
Como última cartada para ser a melhor mulher do planeta, eu resolvi ir morar sozinha.
Aluguei um apartamento charmoso, decorei tudo brilhantemente, chamei amigos para ainauguração, servi bom vinho e comidinhas feitas, claro, por mim, que também finalmente aprendi a cozinhar.
Resultado disso tudo: silêncio absoluto.
O tempo passou, eu continuei acordando e indo dormir todos os dias querendo ser mais feliz para ele, mais bonita para ele, mais mulher para ele.Até que algo sensacional aconteceu...
Um belo dia eu acordei tão bonita, tão feliz, tão realizada, tão mulher, que eu acabei me tornando mulher demais para ele.
Ele quem mesmo?

Sou eu assim sem você

Bruna Demaison

Foi em um bar, aquele onde todos iam. Ou foi naquela boate? Tempos depois você me chamou para sair, mas lá atrás já passávamos horas rindo e ignorando o resto das festas. Eu te achava tão inteligente que tinha até medo de falar alguma burrice!
Te adorar estava ali como o acordar, falar, viver. Tentei tanto e por tanto tempo te esquecer que desisti de tentar, e foi durante esse tempo que fui me esquecendo de outras coisas. Esqueci que não sabia dirigir. Esqueci de pisar na embreagem, engatar a primeira, soltar lentamente o pedal, colocar o veículo em movimento, ouvir o barulho do motor e nunca passar a quinta porque era difícil reduzir.
Quando lembrei, já estava fazendo como se sempre o tivesse feito. Ou como se tivesse aprendido a fazê-lo. Esqueci de sempre agradar. Logo eu, que chorava no banheiro da escola por ter sido repreendida, que tantas vezes me identifiquei com aqueles garotinhos que têm a merenda roubada pelos fortões, um dia me vi discordando.
O que é isso? Só percebi quando já estava emitindo uma opinião contrária em público! Eu, a rainha do “precisa buscar tia Maricotinha logo ali no Japão, você vai, querida?”. E as oportunidades imperdíveis? Esqueci de não perdê-las e perdi milhares durante esse tempo, quase matei de desgosto um bocado de gente e aproveito o espaço para me desculpar por tê-los feito sofrer tanto, quanta decepção, sinto desapontá-los.
Sinto uma enorme vontade de mandá-los longe! As expectativas eram deles, não pedi, era decepcionar lá ou cá e não percebi a virada ou teria anotado o passo a passo dessa mudança. No começo eu me desculpava e sofria, depois só me desculpava e depois nem sabia mais de culpa nenhuma. Esqueci que não sabia o que eu queria, e por não saber fui fazendo para ganhar tempo e nesse tempo ganhei sabedoria.
Nesse tempo não esqueci de ter dúvidas, colecionei um monte delas. Mas não em uma daquelas coleções em que os objetos ficam guardadinhos para admirarmos vez ou outra, eu as colecionei para soltá-las. Colecionei medos também, uma porção. A esses ainda sou mais apegada, esqueci foi de anotar a data de extermínio de alguns. E das certezas, dos preconceitos, de algumas idéias e outras decisões. Foi no seu aniversário, na festa que estava marcada na minha agenda há meses. Ou foi quando nos esbarramos na rua naquela tarde? Ainda não tinha me dado conta. Uma coisa estranha. Não fez mais calor ou frio, não repassei depois cada palavra dita. Reparei que seus olhos estavam envelhecidos como os do seu pai. Você sempre falou tão rápido? Não sorri muito porque... não sei por quê.
Minhas mãos não costumavam gelar? Em que momento... Eu tentei tanto e por tanto tempo que desisti de tentar, até que esqueci de lembrar de você e agora nem lembro de como era eu sem querer você. Acho que eu era assim. Você notou? Só agora percebi.
Algumas mudanças não acontecem sob tempestades, é uma brisinha leve que está sempre ali e um dia, sem nenhum sinal, ops! A duna andou. É isso? Que perigo.

Sacanagem

Esta é a semana dos namorados, mas não vou falar sobre ursinhos de pelúcia nem sobre bombons. É o momento ideal pra falar de sacanagem. Se dei a impressão de que o assunto será ménages à trois, sexo selvagem e práticas perversas, sinto muito desiludí-lo.
Pretendo, sim, é falar das sacanagens que fizeram com a gente. Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer, só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos. Não contaram pra nós que amor não é racionado nem chega com hora marcada. Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade. Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida merece carregar nas costas a responsabilidade de completar o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo. Se estivermos em boa companhia, é só mais rápido.
Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada "dois em um", duas pessoas pensando igual, agindo igual, que isso era que funcionava. Não nos contaram que isso tem nome: anulação. Que só sendo indivíduos com personalidade própria é que poderemos ter uma relação saudável. Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório e que desejos fora de hora devem ser reprimidos. Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis, e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto.
Ninguém nos disse que chinelos velhos também têm seu valor, já que não nos machucam, e que existe mais cabeças tortas do que pés. Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz, a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, frustram as pessoas, são alienantes, e que poderíamos tentar outras alternativas menos convencionais.
Sexo não é sacanagem. Sexo é uma coisa natural, simples - só é ruim quando feito sem vontade. Sacanagem é outra coisa. É nos condicionarem a um amor cheio de regras e princípios, sem ter o direito à leveza e ao prazer que nos proporcionam as coisas escolhidas por nós mesmos.

O medo do amor

Medo de amar? Parece absurdo, com tantos outros medos que temos que enfrentar: medo da violência, medo da inadimplência, e a não menos temida solidão, que é o que nos faz buscar relacionamentos. Mas absurdo ou não, o medo de amar se instala entre as nossas vértebras e a gente sabe por quê.

O amor, tão nobre, tão denso, tão intenso, acaba. Rasga a gente por dentro, faz um corte profundo que vai do peito até a virilha, o amor se encerra bruscamente porque de repente uma terceira pessoa surgiu ou simplesmente porque não há mais interesse ou atração, sei lá, vá saber o que interrompe um sentimento, é mistério indecifrável. Mas o amor termina, mal-agradecido, termina, e termina só de um lado, nunca se encerra em dois corações ao mesmo tempo, desacelera um antes do outro, e vai um pouco de dor pra cada canto. Dói em quem tomou a iniciativa de romper, porque romper não é fácil, quebrar rotinas é sempre traumático. Além do amor existe a amizade que permanece e a presença com que se acostuma, romper um amor não é bobagem, é fato de grande responsabilidade, é uma ferida que se abre no corpo do outro, no afeto do outro, e em si próprio, ainda que com menos gravidade.

E ter o amor rejeitado, nem se fala, é fratura exposta, definhamos em público, encolhemos a alma, quase desejamos uma violência qualquer vinda da rua para esquecermos dessa violência vinda do tempo gasto e vivido, esse assalto em que nos roubaram tudo, o amor e o que vem com ele, confiança e estabilidade. Sem o amor, nada resta, a crença se desfaz, o romantismo perde o sentido, músicas idiotas nos fazem chorar dentro do carro.

Passa a dor do amor, vem a trégua, o coração limpo de novo, os olhos novamente secos, a boca vazia. Nada de bom está acontecendo, mas também nada de ruim. Um novo amor? Nem pensar. Medo, respondemos.

Que corajosos somos nós, que apesar de um medo tão justificado, amamos outra vez e todas as vezes que o amor nos chama, fingindo um pouco de resistência mas sabendo que para sempre é impossível recusá-lo.

Desconstruções

Quando a gente conhece uma pessoa, construímos uma imagem dela. Esta imagem tem a ver com o que ela é de verdade, tem a ver com as nossas expectativas e tem muito a ver com o que ela "vende" de si mesma. É pelo resultado disso tudo que nos apaixonamos. Se esta pessoa for bem parecida com a imagem que projetou em nós, desfazer-se deste amor, mais tarde, não será tão penoso. Restará a saudade, talvez uma pequena mágoa, mas nada que resista por muito tempo. No final, sobreviverão as boas lembranças. Mas se esta pessoa "inventou" um personagem e você caiu na arapuca, aí, somado à dor da separação, virá um processo mais lento e sofrido: a de desconstrução daquela pessoa que você achou que era real.

Desconstruindo Flávia, desconstruindo Gilson, desconstruindo Marcelo. Milhares de pessoas estão vivendo seus dias aparentemente numa boa, mas por dentro estão desconstruindo ilusões, tudo porque se apaixonaram por uma fraude, não por alguém autêntico. Ok, é natural que, numa aproximação, a gente "venda" mais nossas qualidades que defeitos. Ninguém vai iniciar uma história dizendo: muito prazer, eu sou arrogante, preguiçoso e cleptomaníaco. Nada disso, é a hora de fazer charme. Mas isso é no começo. Uma vez o romance engatado, aí as defesas são postas de lado e a gente mostra quem realmente é, nossas gracinhas e nossas imperfeições. Isso se formos honestos. Os desonestos do amor são aqueles que fabricam idéias e atitudes, até que um dia cansam da brincadeira, deixam cair a máscara e o outro fica ali, atônito.

Quem se apaixonou por um falsário, tem que desconstruí-lo para se desapaixonar. É um sufoco. Exige que você reconheça que foi seduzido por uma fantasia, que você é capaz de se deixar confundir, que o seu desejo de amar é mais forte do que sua astúcia. Significa encarar que alguém por quem você dedicou um sentimento nobre e verdadeiro não chegou a existir, tudo não passou de uma representação – e olha, talvez até não tenha sido por mal, pode ser que esta pessoa nem conheça a si mesma, por isso ela se inventa.

A gente resiste muito a aceitar que alguém que amamos não é, e nem nunca foi, especial. Que sorte quando a gente sabe com quem está lidando: mesmo que venha a desamá-lo um dia, tudo o que foi construído se manterá de pé.

So slow the rain

Eu fiquei no fundo do bar, no meu oitavo whisky. Fiquei sentado sozinho, vendo as garotas dançando. Minha amiga Raquel se destacava com selvageria sensual. Não era novidade pra mim. Fiquei bebendo e pensando em como as pessoas são tristes e desamparadas. Alguma espécie de Deus apenas as colocou por aqui, sem nenhum conselho, um drink grátis ou uma promessa de um cartão postal no fim do ano. Ele apenas as colocou por aqui e as pessoas dançam como se expulsassem a devastação do seu convívio diário, do seu vulcão interno. Ele não nos avisou da insegurança, das palavras ditas com irresponsabilidade na noite escura. Ele não nos falou da solidão irrefreável. Ele sequer deu o tapinha sacana nas costas. Ele foi embora sem olhar pra trás e nos deixou por aqui, irrecuperavelmente amaldiçoados. Então dançamos desvairadamente ou ficamos sozinhos no fundo do bar. Quando o segurança nos expulsou, nem tentei contra argumentar. Pedi um copo descartável, derramei meu whisky nele e fui embora, sozinho, do jeito que sempre me imaginei. Numa rua escura de um Rio de Janeiro excessivamente bonito. Engraçado como nunca me imaginei acompanhado. Ando por aí alguns amigos legais. Já namorei e já casei com mulheres estupidamente bacanas. Mas sempre me imagino assim. Sozinho, com as persianas fechadas e nenhum tipo de música. Só a geladeira roncando e a televisão sem som com algum desenho animado idiota. Alguma rua escura e a ameaça que vem do silêncio e do odor de lixo. Eu fiquei lá vendo o meu amigo Cadu chorar desbragadamente no meio do ensaio enquanto falava o meu texto da mulher que o deixou. Ele pedia desculpas e eu murmurava: “Vai aí, Brother, se não servir pra isso, pra que mesmo que serve?”
Quando fui embora do Rio de Janeiro, chovia. Uma chuva mais forte e mais fria que a chuva dos sonhos da noite anterior. Enquanto o táxi rodava triste pelas ruas do Rio, pensei em inquilinos indesejáveis, em torneiras pingando, em um presidiário lendo a bíblia e chorando por acreditar que Deus o perdoou. As placas molhadas de chuva não me indicavam caminho nenhum. Apenas orientava o motorista que parecia saber decifrar os seus códigos. Senti um calafrio quando vi o carro tombado no meio da rodovia. Fiquei imaginando se aquele cara pensava em morte segundos antes. Se ele assim como eu, sabia que dançamos pra não enlouquecer. Se ele assim como eu, pensa em garotas com nomes estranhos, em lugares onde a garganta fica tão seca e onde o coração aperta de um jeito incontrolável. Fiquei pensando que essas coisas são assim pra todo mundo, só que tem gente que nunca enfia a mão até o fundo do pote. Fiquei pensando que tem gente que só come as azeitonas que estão flutuando. Fiquei pensando que tem gente que tem certeza que é feliz. Por um momento, senti pena deles. Mas foi só por um momento.
Passamos a vida inteira ouvindo os sábios conselhos dos outros.
Tens que aprender a ser mais flexível, tens que aprender a ser menos
dramática, tens que aprender a ser mais
discreta, tens que aprender... praticamente tudo.
Mesmo as coisas que a gente já sabe fazer, é preciso aprender a fazê-las
melhor, mais rápido, mais vezes.
Vida é constante aprendizado.
A gente lê, a gente conversa, a gente faz terapia,
a gente se puxa pra tirar nota dez no quesito "sabe-tudo".
Pois é. E o que a gente faz com aquilo que agente pensava que sabia?
As crianças têm facilidade para aprender,
porque estão com a cabeça virgem de informações,
há muito espaço para ser preenchido, muitos dados a serem assimilados
sem a necessidade de cruzá-los: tudo é bem-vindo na infância.
Mas nós já temos arquivos demais no nosso winchester cerebral.
Para aprender coisas novas, é preciso antes deletar arquivos antigos.
E isso não se faz com o simples apertar deuma tecla.
Antes de aprender, é preciso dominar a arte de desaprender
Desaprender a ser tão sensível, para conseguir vencer mais facilmente
as barreiras que encontramos no caminho.
Desaprender a ser tão exigente consigo mesmo,
para poder se divertir comos próprios erros.
Desaprender a ser tão coerente, pois a vida é incoerente por natureza
e a gente precisa saber lidar com o inusitado.
Desaprender a esperar que os outros leiam nosso pensamento.
Em vez de acreditar em telepatia, é melhor acreditar no poder da nossa voz.
Desaprender a autocomiseração:
enquanto perdemos tempo tendo pena da gente mesmo, os demais seguiram em frente.
A solução é voltar ao marco zero.
Desaprender para aprender.
Deletar para escrever em cima.
Houve um tempo em que eu pensava que, para isso,
seria preciso nascer de novo, mas hoje sei que dá pra renascer
várias vezes nesta mesma vida.
Basta desaprender o receio de mudar.
Eu tava bebendo. Eu bebo todas as noites. E todas as madrugadas. Eu bebo muito. E eu tava bebendo com o meu amigo Negão. E ele tava tentando me decifrar e pensando que sabia o que tava se passando comigo. O Negão é um grande Cara. E ele pode pensar o que quiser. E eu respeito o pensamento dele. Mas ele não faz nem idéia. Ah, Brother, ele não passou nem perto. E eu bebo mais. E eu vou pra casa sozinho. Tem uma garrafa de Jim Beam aqui em casa que o Gruli me trouxe de presente de Foz de Iguaçu. E eu matei meia garrafa na madrugada de ontem. E eu tô olhando pro resto da garrafa agora. E eu sinceramente, não sei se vou acabar com ela agora. Eu não sei o que vou fazer. Eu tô ouvindo uma bela música do Zé Rodrix. O Zé Rodrix fez umas coisas legais antes de encaretar publicitariamente. Eu tô com o fone de ouvido. Eu tô escrevendo como um possesso. Como faço todas as madrugadas quando chego em casa angustiado. E eu não tô reclamando. Angústia não é exatamente uma coisa tão ruim assim. E eu entendo meu irmão Rubens K querendo ensinar sua gata a beber. E eu entendo a janela aberta. E eu nunca pensei em olhar pro outro lado da rua. Mesmo porque eu sei que do lado de cá é tão perigoso quanto o lado de lá. E eu não tô sequer procurando um lugar seguro. "Quando você vier morar comigo / não esqueça de levar o seu coração". Entendam o significado do que é "singelo". Mesmo porque eu já tentei explicar pra meia dúzia e fui rechaçado. Por isso eu escrevo peças de teatro. E poesia. E ando por aí, meio torto, meio esquizo. Eu queria voltar pra casa e fechar os olhos, e descansar. Mas eu sei que não vou. Eu sei que vou ficar por aí, com esse hellboy causando um estrago nas minhas entranhas. Eu sei que vai ter meia dúzia achando que podem falar o que quiserem, como se eu fosse tão simples assim. Posso não ser grande merda, eu sei que não sou mesmo, mas não sou exatamente tão simples assim. Então talvez eu mate a garrafa de Jim Beam olhando pela janela. Talvez eu recorra a Donavon Frankenreiter ou a Van Morrison. Talvez eu pense em sereias no alto do Empire State. Talvez eu pense em gorilas gigantescos na Ilha de Circe. Talvez eu não queira muito da vida. Minha filha tá nesse momento com suas aflições que são só dela. Eu queria abraçar minha filha e dizer : Isso não vai passar, menina. Isso só vai piorar. Eu sou um péssimo pai. Mesmo porque eu não vou perder meu tempo pintando o teto do quartinho dela com estrelinhas brilhantes. Quer saber? Jim Beam, você me parece um grande amigo.
Escrito por Mário Bortolotto

Pensando em você

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.
Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você – seria, seriam?
Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.
Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.
Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu, em Um Provável Devaneio

Mulherzinhas

DEPOIS DE DEVORAR MONTEIRO Lobato na infância, inaugurei minha pré-adolescência lendo o clássico “Mulherzinhas”, de Louise May Alcott, que contava a história de quatro irmãs que viviam na Inglaterra do século 19. Se fosse lançado hoje um livro com este título, não apostaria em seu êxito. Mulherzinha acabou virando sinônimo de candura, fragilidade e, por que não dizer, de uma certa patetice. Sabemos todas que chamar uma mulher de mulherzinha, no século 21, é ofensa mortal.
Somos mulherões. Algumas, pelo aspecto físico: são as voluptuosas que estampam as capas de revista e que não deixam dúvida sobre o merecimento do superlativo. Outras — a maioria — são mulherões porque não vieram ao mundo a passeio. Trabalham duro dentro e fora de casa, não raro sustentam a família sozinhas e ainda reservam um espaço para a vaidade, nem que a vaidade se resuma a um batom catado na bolsa durante o trajeto do ônibus. Já escrevi sobre estes mulherões, mas nunca é demais lembrá-las, pra isso ao menos deve servir um dia internacional só para nós.
Dia da Mulher, na minha humilde opinião, tem a mesma importância do Dia da Árvore ou do Dia do Índio: serve para homenagens e reflexões, mas, na prática, não muda nada. Nem o meio ambiente é mais preservado, nem os índios são mais respeitados, nem as mulheres ganham melhores salários pelo fato de terem um dia só para si. O que muda alguma coisa nesta vida é postura, consciência e coragem. E, neste aspecto, fico feliz ao perceber que as coisas estão mudando pelo fato de que há cada vez menos mulherzinhas no mundo.
A mulherzinha é aquela que confunde delicadeza com resignação. Fala baixinho, com uma voz titubeante, como se tivesse que pedir licença para externar sua opinião — nas raras vezes em que tem uma. A mulherzinha tem o maior orgulho de ter suas contas — todas — pagas por um homem. Nunca cogitou experimentar alguma independência, mesmo que relativa. A mulherzinha não conhece assunto melhor do que novela, empregada e liquidações. E acredita que toda fofoca é inocente. Ela é um amor e ri o tempo todo, ninguém sabe direito do quê. A mulherzinha tem pavor de qualquer tipo de evolução — aliás, deve ter deixado escapar um “já foi tarde” quando soube que Betty Friedan faleceu. A mulherzinha enrubesce pelos motivos errados. E quase sempre acha charmoso fazer o papel de burra — o que diz tudo.
Tento me lembrar de quantas representantes do gênero conheço, e, ufa, quase não recordo de nenhuma. Talvez uma ou duas que ainda persistem em servir apenas como adorno da sociedade. São mulherzinhas muito queridinhas, muito boazinhas, muito sonsinhas, que adoram viver no encantado mundo do diminutivo.
Toda mulher já foi mulherzinha um dia, até que uma frustração aqui, uma descoberta ali, um caída de ficha, uma dor profunda, um aperto financeiro, uma longa viagem ou uma leitura impactante a fez acordar dos devaneios de cinderela e se tornar uma mulher ereta, firme, que responde por si própria. As que ainda precisam de atenção do Estado — e são muitas — precisam não por serem mulheres, e sim por serem excluídas e estigmatizadas, como vários homens também são — ou não?
Medos, ainda temos alguns. Natural. Mas entre eles já não está o de retroceder ao século 19, quando éramos muito românticas — ótimo, isto ainda deveria estar em uso — porém nada além de românticas.

A despedida do amor

Existe duas dores de amor. A primeira é quando a relação termina e a gente, seguindo amando, tem que se acostumar com a ausência do outro, com a sensação de rejeição e com a falta de perspectiva, já que ainda estamos tão envolvidos que não conseguimos ver luz no fim do túnel.

A segunda dor é quando começamos a vislumbrar a luz no fim do túnel.

Você deve achar que eu bebi. Se a luz está sendo vista, adeus dor, não seria assim? Mais ou menos. Há, como falei, duas dores. A mais dilacerante é a dor física da falta de beijos e abraços, a dor de virar desimportante para o ser amado. Mas quando esta dor passa, começamos um outro ritual de despedida: a dor de abandonar o amor que sentíamos. A dor de esvaziar o coração, de remover a saudade, de ficar livre, sem sentimento especial por ninguém. Dói também.

Na verdade, ficamos apegados ao amor tanto quanto à pessoa que o gerou. Muitas pessoas reclamam por não conseguir se desprender de alguém. É que, sem se darem conta, não querem se desprender. Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um suvenir de uma época bonita que foi vivida, passou a ser um bem de valor inestimável, é uma sensação com a qual a gente se apega. Faz parte de nós. Queremos, logicamente, voltar a ser alegres e disponíveis, mas para isso é preciso abrir mão de algo que nos foi caro por muito tempo, que de certa maneira entranhou-se na gente e que só com muito esforço é possível alforriar.

É uma dor mais amena, quase imperceptível. Talvez, por isso, costuma durar mais do que a dor-de-cotovelo propriamente dita. É uma dor que nos confunde. Parece ser aquela mesma dor primeira, mas já é outra. A pessoa que nos deixou já não nos interessa mais, mas interessa o amor que sentíamos por ela, aquele amor que nos justificava como seres humanos, que nos colocava dentro das estatísticas: eu amo, logo existo.

Despedir-se de um amor é despedir-se de si mesmo. É o arremate de uma história que terminou, externamente, sem nossa concordância, mas que precisa também sair de dentro da gente.

o fracasso como recompensa

prometo e não tomo providências
meu evangelho renegado por todas as manhãs
minha fuga dos restaurantes coreanos e dos suspiros forjados
tenho pensado insistentemente em constrangimentos noturnos
mas ainda acredito no que se convencionou chamar de suplicio
até fracassados tem códigos de ética
minha fé inabalável em possíveis viagens pra bem longe daqui
entre palmeiras e a brisa fria do fim de tarde
eu devo me deitar na solenidade da memória perdida
num quarto de hotel com nome exótico e reverente
a majestade de quem se deu por esquecido
de quem jogou fora todas as fichas
de quem sempre esteve fadado à derrota
mesmo sentado no topo do mundo
mesmo que ela dance semi nua na minha frente
que me ofereça sua nuca em sacrifício
e que derrame vinho em meu peito e deslize sua língua suave
ainda assim vou pensar que é sempre tarde demais
meu orgulho abençoado de perdedor
deixo o testamento de um loser
com duvidosa compaixão pela raça humana
como recompensa, tenho o sol abrasador
e a crença vil num evangelho porcamente escrito
só levo comigo minha inadequação e alguns poemas de Dylan Thomas
não tem mais pra ninguém

Daqui a 20 minutos, vai ser eu e Deus.

Relendo Caio Fernando Abreu

Meu nome é Caio F.Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada
Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.
(Caio Fernando Abreu - Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)

Se não era amor

“...Se não era amor, era da mesma família. Pois sobrou o que sobra dos corações abandonados. A carência. A saudade. A mágoa. Um quase desespero, uma espécie de avião em queda que a gente sabe que vai se estabilizar, só não se sabe se vai ser antes ou depois de se chocar contra o solo. Eu bati a 200 km por hora e estou voltando a pé pra casa, avariada. Eu sei, não precisava me dizer outra vez. Era uma diversão, uma paixonite, um jogo entra adultos. Talvez este seja o ponto. Talvez eu não seja adulta o suficiente para brincar tão longe do meu pátio, do meu quarto, das minhas bonecas. Onde é que eu estava com a cabeça, de acreditar em contos de fada, de achar que a gente muda o que sente, e que bastaria apertar um botão que as luzes apagariam e eu voltaria a minha vida satisfatória, sem seqüelas, sem registro de ocorrência? Eu não amei aquele cara. Eu tenho certeza que não. Eu amei a mim mesma naquela verdade inventada.”

UM LUGAR LEGAL PRA ESTAR (WHEN THE MUSIC STOPS)

Ela me disse casualmente
que havia notado a mancha de sangue na minha camisa
Disse a ela: Não se preocupe, não é nada
Ela respondeu: Eu não tô preocupada
Resmunguei: é melhor assim
Achei que podia me divertir um pouco
assistindo uma luta de boxe na tv
Tirei a camisa manchada de sangue e joguei no tanque
Ela vestiu uma micro-saia e saiu pra rua
Abri uma cerveja e resolvi esperar
Os ponteiros do relógio eram guilhotinas no meu pescoço
Quando ela voltou, não falei nada
Fiquei no escuro vendo ela se mexer
deixando cair sua saia
no caminho pro banheiro
Deixou a luz acesa e ouvi o barulho
não vou usar de eufemismos nesse momento
pra dizer o que ela estava fazendo
somos um casal com tempo de serviço
nossa indiferença mútua provava isso
meu enorme peso no sofá atestava isso
Ela acendeu um cigarro no escuro da sala
e a chama do isqueiro fez com que ela me notasse
"é mais difícil do que você imagina", ela disse
e o seu desprezo me acertou como um blefe de pôquer
Ainda ficou um tempo olhando pra mim
antes de vencer o orgulho e perguntar
"O que era a mancha na sua camisa?"
"Já disse. Não é nada. Não precisa se preocupar"
Ela soltou um foda-se e foi pro quarto,
deitou e ficou fumando olhando o teto
Levantei e fui até o banheiro
Cambaleei e tive que me apoiar na porta
Abri o armário e peguei o mercúrio cromo
ou você não sabia que a maioria das histórias de amor
terminam com alguém limpando as feridas?

Extremos da paixão

"Não, meu bem, não adianta bancar o distante lá vem o amor nos dilacerar de novo..."

Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira: compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó.O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya,ilusão,passatempo.E exigimos o terno do perecível,loucos.Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolosem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.
(in Pequenas Epifanias)

Carta a uma amiga

Em 95, o escritor Caio Fernando Abreu, então colunista do jornal O Estado de São Paulo, publicou uma carta que teria sido escrita por Clarice Lispector a uma amiga brasileira. Ele comenta, no artigo, que não há nada que comprove sua autenticidade, a não ser o estilo-não estilo de escrita de Clarice Lispector. Ele dizia: "A beleza e o conteúdo de humanidade que a carta contém valem a pena a publicação..."

Berna, 2 de janeiro de 1947
Querida, Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma. Tua Clarice

Enlouquecer para não dançar

No começo, eu apenas achava que os helicópteros rondavam a kitchenete, batedeiras sórdidas me espreitando, esperando que eu metesse a cabeça na janela girando confusos sobre a antena externa, mas até aí ainda havia o bourbon na geladeira, uma maçã mordida sobre a guitarra e o ballet desritmado de Martin Sheen no vídeo, então eu saía na madrugada, invariavelmente bêbado, cruzava os amigos e dizia pra eles entre infindáveis goles de cerveja: “eu sei por onde ir, eu sei muito bem por onde ir”. E todas as bobagens eram perdoadas em nome da minha infância prolongada, meus atos de solidariedade, minha lealdade desmedida, minha fidelidade militar. Mas havia alguma coisa me rasgando o peito, escancarando meus segredos, me deixando nu sobre a mesa de bilhar, eu não sei, talvez a paixão não admitida, ou um cara com 18 anos morrendo sozinho numa selva asiática com o retrato da namorada, os mosquitos decolando com suas doenças do sono e uma chuva intensa, gelada, me resfriando na calçada, me curando a ressaca, me levando de volta, aí eu disse pra mim mesmo: “a loucura anda de táxi”. Passei a andar armado, não fazia mais a barba, não cortava o cabelo, não escovava os dentes, apenas esperava, apenas pedia a Deus que ela se manifestasse. Eu estava pronto pra ela. Foi aí que comecei a acreditar nos helicópteros, nela fazendo barulho do outro lado da parede, ouvindo Annie Lennox em alturas obscenas só pra me levar ao inferno. Foi aí que eu pensei: “a loucura fotografou a minha alma e a vendeu pra um japa maluco na feira hippie”. Eu me recusava a freqüentar terapeutas, a dar com a língua nos dentes, a conviver com enfermeiras me dando de comer, foi aí que esqueci Deus. Tomava comprimidos pra dormir, as hélices giravam sobre a minha cabeça e ela contava que passou um mês em São Paulo andando às tontas pela Paulista, rasgando as folhas dos calendários, se surpreendendo com happenings inesperados, nesse dia eu pensei: “ela quer me deixar louco” ou coisas como “a loucura tem olhos sonolentos”. Agora eu forço a visão na direção das gueixas, faço propostas inaudíveis para as apresentadoras de tv, bebo bourbon no gargalo e sei que não há nada mais triste do que um cara bebendo sozinho, entrando em bares e sacando que ela já tá com outro, percebendo que na verdade não se significou muita coisa, só a agulha na veia fazendo com que a loucura percorra os canais numa velocidade incalculável, o suficiente pra me deixar dizendo bobagens, desta vez imperdoáveis ao telefone. Quantas marcadas em nome de uma suposta sensibilidade nunca antes detectada. Agora percorro de novo os bares, esperando encontrar uma juke-box e uma garota solitária. Eu tenho uma ficha, já sei que os helicópteros estão mesmo atrás de mim, eu me lembro de Deus e peço a Ele que desta vez eu enlouqueça com suavidade.

quarta-feira, junho 06, 2007

LYNCH LAW – (PICUÍ – 2006 - JUNE, 19)

O homem – bruto homem – é o único dos animais que mata por prazer
O homem – irracional animal é o único dos animais que não se reconhece como tal
Já que nomeou e dominou todos os demais...
E, ainda assim, este mesmo homem é capaz de matar outro homem e esquarteja-lo
Friamente, calmamente, escolhendo o melhor corte, o destrinchar dos membros

Outros semelhantes, ao saberem do fato, desconhecem o racional
E se excluem da sociedade, e se igualam àquele homem, àquele bicho...
E armam o palco da tragédia, acendem a fogueira
E a turba prossegue, escondida entre a fumaça negra dos pneumáticos
E surgem pedras e paus e pedras e risos e crianças e velhos e rapazes e moças

... E eu que também estava lá, curiosidade mórbida de ver para crer
Vendo aquele homem ficar acuado, receber pedradas, responder com pedradas
E o homem é queimado e se queima jogando de volta o fogo
E ele morre lentamente – de pavor – e as pedras fazem o resto do trabalho
E os braços fortes que erguem as pedras as jogam na cabeça do homem

O fato está consumado – o corpo já apedrejado é queimado, arrastado
E o povo em frenesi, o erguem nos braços, qual um Judas em sábado-de-aleluia
E a malhação continua, com facas, chutes, escarros
E aquela massa disforme que já foi um homem que virou bicho
Foi chutado pelos bichos que se dizem homens...


Fabiana Agra

Caminheiro grande - ou quase patinho feio

À Luis Caon


...O pássaro foi encontrado por estas bandas
meio atordoado, um tanto perdido, talvez sentindo falta do frio
Era diferente mesmo, aquele pássaro!
E talvez por causas das diferentes plumagens, fora rejeitado do ninho
Vivendo errante, parece que adaptou-se à vegetação inóspita,
Ao clima quente e às outras espécies tão estranhas para ele.
Mas o pássaro queria mostrar o seu canto aos outros daqui
E queria ensinar trinados estranhos que seus hospedeiros não acompanhavam
- Aquele pássaro sabia expressar-se em vários sons
só não entendia porque de tanto estranhamento
ora, era apenas um pássaro diferente, vindo de longe
e que apesar de tudo, não queria fugir das suas raízes...

Aquele pássaro, por mais forte que parecesse, sentia falta dos seus
Sentia falta do frio das montanhas, dos campos floridos
Talvez quisesse a companhia dos que não lhes eram mais
Por não serem seus iguais – não sei.
Apenas sei que ele não agüentava mais essas pairagens
Começou a definhar, a definhar, e, da última vez que cantou
Na serra da Borborema, quem o viu notou que estava diferente:
Canto triste, uma plumagem esgarçada,
em nada lembrava o pássaro altaneiro que antes chegava.
E com um canto desesperado, foi-se pra nunca mais voltar
Voltou pras suas terras, buscando refúgio e sossego
Mas ele continuou sendo incompreendido, ninguém queria ouvir seu canto.

E, como acontece aos pássaros, hoje ele não cantou, não bateu asas
Apenas cambaleou pelo caminho, olhou pro infinito e fechou para sempre os olhos.



Fabiana Agra
09/11/2006

Curta

A vida é curta
Tão curta que às vezes não cabe
Num prontuário médico
A vida é dura
Tão dura quanto o solo
Em que a abandonamos

A vida é o não saber
Não saber o que somos
E viver na eterna procura
A vida é o não ter
E passar a vida inteira
Juntando cacarecos

A vida é pequena
E por ser assim, não vale a pena
Usar máscaras e tapa-olhos
Eles impedem de ver o essencial
Desta nossa vida curta
Em que há muito se perdeu a bula

02/11/05

Os viajantes do saber

Não se sabe de onde vieram aquelas pessoas; provavelmente, do Deserto de Urda, que se situava no centro do continente. De certo, apenas o destino de todos: aqueles homens e mulheres tinham um só desejo, que era o de conhecer o Grande Oceano Skuld. Na caravana, havia gente de todas as raças, de todos os credos e cada uma daquelas pessoas tinha um objetivo diferente nessa jornada. Muitos queriam apenas sentir a água salgada e mergulhar nas ondas, outros queriam fixar morada na praia; alguns poucos queriam atravessar o mar e conhecer outros continentes; outros não sabiam por que estavam alí; talvez por falta de perspectivas ou de objetivos.
Eram quarenta viajantes, tuaregues do “querer saber”. Alguns seguiam no anonimato, outros tantos eram conhecidos por todos, uns poucos conseguiam ser reconhecidos. Frigga, Mimir, Dafne, Ceres, Ismênia e Heimdall eram os nomes de alguns deles. Haviam também outros tantos, como Faetonte, um rapazinho mirrado e tímido, que sempre andava triste, parecendo que estava perturbado com algo. Sem falar de Loki, criatura intragável, que quase todos queriam ver longe do grupo. A caravana era liderada por um Conselho composto de anciãos e anciãs, dentre eles se destacando Dike, Nereu, Crono e Odin.
Mas não seria fácil chegar ao destino. O deserto era medonho e logo tragaria alguns dos incautos que o desafiaram: Faetonte foi o primeiro deles. Na maior duna que tiveram de atravessar, desapareceu; ainda tentaram segurá-lo, mas foi em vão. A força do deserto era maior do que o esforço quase sobre-humano de seus companheiros. Logo depois, houve uma tempestade de areia e Loki desapareceu no meio do vendaval. Foram dar falta dele no outro dia mas, ao contrário de Faetonte, todos se alegraram com o desaparecimento de Loki, até mesmo o Conselho de Anciãos.
Durante cem dias, enfrentaram a fúria do deserto. Em meio ao silêncio, apontavam no horizonte alguns poucos oásis onde todos iam se refrescar e se refastelar debaixo das tamareiras. Logo, as víboras e as najas foram ficando para trás; a paisagem foi se modificando; a vegetação rasteira foi dando lugar a árvores de copas frondosas. Era a Floresta Verdandi, lugar tenebroso, repleto de pântanos, areia movediça e animais medonhos. Nesse ínterim, Frigga e Ceres foram ficando para trás; de repente, lembraram que tinham muitos afazeres, que haviam deixado os parentes nos seus lugarejos e que, pensando bem, talvez não fosse de grande valia chegar até o mar. Dafne e Ismênia bem que tentaram, suplicaram, mas foi em vão; as duas estavam decididas. Os líderes da caravana terminaram por concordar com o retorno de ambas, não sem antes provê-las de mantimentos para suportarem a volta.
Passadas mais de duzentas luas e muitos perigos e perdas, já podiam sentir o cheiro do mar, já podiam ver as gaivotas sobrevoando os céus. Em pouco tempo, o vento salgado já queimava os rostos cansados da viagem. A praia não tardava a aparecer! Mais alguns dias e todos chegaram ao seu destino. A água salgada lambia os pés daqueles viajantes que não se continham em seu deslumbramento. Como era imenso o mar! A partir daí, já não havia caravana e sim, pequenos grupos separados pelo destino. Ismênia e seu irmão resolveram se estabelecer ali mesmo, de frente para o mar. Heimdall foi ensinar em outro continente; Mimir conseguiu um posto de sacerdote, enquanto Dafne decidiu singrar o oceano e continuar a sua busca rumo ao conhecimento.
De todos os que ficaram pelo caminho, apenas Ceres e Frigga eram lembradas por todos da caravana, especialmente por Ismênia e Dafne. Todos queriam saber se elas tinham conseguido retornar. Alguns mensageiros logo se encarregaram de trazer notícias. Poucas luas depois, voltaram com a resposta. Frigga voltou ao seu velho ofício, de consertar colunas tortas e danificadas. Ceres continuou a mexer com receitas. Não se sabe, porém, o que se passava em suas cabeças. Se estavam arrependidas por não terem terminado a viagem, se estavam satisfeitas com a vida que continuavam a levar. Se sabe apenas, o que elas perderam quando desistiram. Ah, se elas pudessem estar com toda aquela gente que sempre quis ver o mar! Elas, certamente, iriam se encantar com o mistério das águas... Mas, preferiram o conforto do que já estava construído, ao imponderável da aventura.
...Enquanto atravessava o Grande Oceano Skuld, Dafne pensava na jornada que havia vencido, e em todas as pessoas que agora também faziam parte de sua vida. Tinha a certeza que seria muito difícil voltar a reencontrar aquelas pessoas, já que não sabia nem se conseguiria chegar ao seu destino, devido aos grandes perigos que certamente enfrentaria naquela travessia; além disso, o lugar aonde estava indo era totalmente selvagem! Lembrou do dia em que se despediu de Ismênia, Mimir e Heimdall e do grande luau que fizeram para comemorarem as suas novas vidas. Lembrou com tristeza de Ceres e Frigga; não conseguia entender como, sendo escolhidas, preferiram desistir e voltar à mesmice de vidas modorrentas em meio à poeira do deserto. Dafne fitou o horizonte; não sabia porque, mas estava triste. Talvez porque agora estivesse só. Ah, se ela pudesse prever o que lhe aguardava em seu novo mundo!...


por
Fabiana Agra

O vendaval do ser - by F.Agra

A célebre frase de Karl Marx , “tudo que é sólido desmancha no ar”, é uma constante em nossas vidas. Temos a impressão, na maior parte do tempo, de que todas as coisas – os relacionamentos, os amigos - são transitórias: assim como chegam, partem, muitas vezes, sem ao menos olharem para trás. Essa incerteza, essa inquietude, é própria dos nossos tempos; dias frenéticos que parecem não serem mais constituídos de 24 horas, de tantos projetos e afazeres que temos de dar conta. Então, é num momento como esse, que cai sobre nossas cabeças a certeza da finitude da vida: a cada dia, a cada minuto, se esvai um pouco de nossa existência. A vida é então comparada a um imenso aeroporto: pessoas indo e vindo ininterruptamente; sorrisos e lágrimas misturando-se em tênues, fluidos instantes. Como bem disse Nascimento, de encontros e despedidas são feitos os nossos momentos.
E sempre arranjamos vilões, para explicarmos a efemeridade da vida. A maioria de nós, poetas, culpa a modernidade por este estado em que o homem se encontra - a “coisificação do indivíduo”: cada vez mais, o homem necessita apossar-se de um maior número de coisas para ser. As coisas adquirem personalidade própria e subjugam o homem, despindo a sua alma. Criamos necessidades que terminamos por não mais entender; são as necessidades “desnecessárias”: é imperativo que se compre o carro “último tipo”, a roupa de determinada griffe, para que haja uma satisfação pessoal, para que nos sintamos mais felizes. Mas eis que, mal saímos da loja, aquele objeto de desejo nada mais significa, não dá uma satisfação duradoura a quem o adquire. E a vida segue o seu curso. Precisamos trabalhar cada vez mais, para adquirir cada vez mais bens e, no final, as coisas não têm um verdadeiro significado para nós. O mundo da aparência toma o lugar da essência e a realidade é eclipsada pelo sol que nunca se põe, o sol da insatisfação, do “querer-ter”, em detrimento do “vir-a-ser”. Assim, nos agarramos a desejos fugazes, a pequenos prazeres; acomodamos a nossa existência à materialização de nossos desejos consumistas. Perdemos a capacidade de sermos sedentos de saber e nos tornamos sedentários, numa existência pequena. Mas, o que é pior: perdemos a maior parte do nosso finito tempo de vida buscando a felicidade nas coisas!
Se transportarmos a frase de Marx para uma acontecência real, notamos que, num grande vendaval, as coisas pesadas são destruídas; casas e carros voam pelos ares; árvores são quebradas, são esfaceladas pela força contida na ventania. Mas, quando chega a calmaria, nos damos conta de que só restaram ao nosso redor as folhas das árvores. As folhas, por serem leves, não são destruídas; elas flutuam no redemoinho e caem, intactas, aos nossos pés. Após a ventania, um sem número de outras folhas, de papéis, também terminam por chegar ao chão; são as palavras que escrevemos, que sobrevivem à toda sorte de intempéries; são elas, também, as identidades que adquirimos, a fim de podermos sobreviver...

O passado e o sonho

Hoje, partículas do meu passado voltaram a fazer parte do meu eu. Estava em uma livraria, rodeada por milhares de títulos e autores quando, num rompante, eis que surge alguém por entre as prateleiras. Era o meu amigo anarquista. Reconheci-o instantaneamente, pois ele quase não mudou nesses oito anos; apenas a barba está bem maior: uma barba loira, rala, porém comprida, emoldurando o sorriso maroto que conheci no apogeu dos meus anos dourados. Rogério me cumprimentou e ficamos alguns minutos relembrando o passado; indaguei da sua vida, que continua a mesma: casado com a mesma mulher, acreditando no mesmo ideal; o que diferiu da última vez que nos vimos foi o número de filhos; agora são quatro. Ele me falou de seus planos, do livro que está para lançar no próximo sábado; perguntou como eu estava. Falei que muito bem, buscando outros caminhos, mas numa boa... Depois de algum tempo, nos despedimos. Ele foi tratar do lançamento do seu livro, enquanto eu continuei a buscar alguns outros para ler, afim de me desligar um pouco da rotina.
Mas a imagem do meu antigo amigo não me sai da memória. Por que as coisas têm que ser assim? Rogério em quase nada mudou: os mesmos ideais anarquistas, o mesmo sonho revolucionário de mudar o mundo. Fico pensando: e eu, em que acredito agora? Quantos sonhos sonhei e quantos sonhos abortei por covardia e conveniência? Quando éramos companheiros de curso, alimentávamos os nossos sonhos; ele continuou acreditando, enquanto eu abdiquei dos meus ideais, desisti da utopia. Acho que me tornei cética, uma desiludida, talvez...
É, meu amigo. Foi bom te encontrar. Foi bom que a tua imagem risonha e tranquila me colocasse contra a parede do óbvio e do ponderável. A tua autenticidade me faz ter vontade de repensar a minha vida; mas será que o sonho pode retornar? Não sei. Talvez seja tarde demais para voltar. Talvez o cotidiano e a batalha de cada dia tenham vencido os ideais da garota insatisfeita que clamava por uma revolução. Acho que já é hora de eu voltar para os meus livros de Direito, esquecer daqueles inesquecíveis anos do início da década de 90 e amargar para sempre o desgosto de não ter conseguido perpetuar o sonho...

natal - ano novo

Mais um Natal... Mais um “Ano Novo”...

E eu fico me perguntando: faz sentido? Faz sentido desejar dezenas de frases repletas de lugares-comuns, acompanhadas daquelas imagens que trazem à mente uma geladeira – em pleno “40 graus à sombra”?

Já tentei ser diferente (sendo igual a tantos outros), mandando mensagens politicamente corretas, daquelas que fazem a ceia-de-natal querer voltar... Já tentei provar que é tudo convenção, que, na verdade, se é para comemorar o salvador, Jesus nem nasceu em dezembro... Até já entrei naquela de mostrar cenas de traumatizar, tipo crianças da Etiópia etc. etc. Apelei também para a política internacional, para os atentados, para Bin Laden X Bush...

Mas, eis que mais um dezembro chega e eu estou às voltas com o “santo-consumismo-ocasionado-pelo-décimo-terceiro-salário”; com o que dizer para os meus amigos, para os mais “chegados”, neste fim-de-ano – com o que dizer ou mesmo se devo calar. Afinal, é chato ser o estraga-prazeres, chegando sempre para lembrar da fome do mundo, da devastação da Amazônia, coisa e tal.

Portanto, este ano, decidi não nadar contra a maré. Não vou lembrar a vocês que não há quase nada para comemorar; que o analfabetismo está aí (dessa vez somado ao digital), que não basta mais ao pobre ter uma geladeira e uma TV em casa (nós outros já criamos outras necessidades bem mais “necessárias”) para se sentir mais “gente”; que o Brasil enfrenta uma guerra civil em todo o seu território, seja pela mão da violência, seja pela mão da política, seja pela mão do nosso pouco-caso...

Eu prometo que não vou lembrar a vocês que milhões de crianças estão catando os nossos lixos – o meu, o seu e o do Bush também, por que não? Também não vou falar que a lei do desarmamento não vai pegar, que o ECA é desrespeitado e até ridicularizado pela grande maioria da população, que o Estatuto do Idoso é mais uma lei a ser esquecida... Muito menos falarei do desmatamento, da extinção de espécies... Eu juro que não falarei nada disso. Dessa vez, não.

Muito menos falarei do preconceito-nosso-de-cada-dia; da intolerância ao diferente; do não-perceber o outro – e também do perceber e ao faze-lo, ridicularizar esse outro. Não, nada disso. Eu não vou lembrar a vocês que, cada vez mais, estamos nos cercando – de cuidados, de cercas, de grades, de “deletes”...

Pois é. Basta apertar a tecla “delete”, e esqueceremos todas as mazelas – porque é Natal. Porque já já, milhões de fogos anunciarão, mundo-a-fora, o ano de 2005. E eu, dessa vez, também farei a contagem regressiva... É aquela velha história: “se você não pode com o inimigo, junte-se a ele”.
Então, um Feliz Natal para todos e um Próspero Ano Novo para nós todos.
É o que desejo.

Fabiana Agra

Tributo a Kelle

Kelle chegou sem avisar. Quando menos esperávamos, eis que ela já havia conquistado para sempre o seu espaço por essas plagas. Não sei se foi o sotaque, se foi o jeito despojado, o fato é que, em pouco tempo, ela já era uma de nós. Aquela jovem não temia obstáculos e com a mesma naturalidade que recebia os aplausos, enfrentava as intempéries. Lembro que, nos tempos de abundância, Kelle nunca se vangloriava; tampouco se desesperava em tempos de dificuldades. De fato, ela foi o fiel da balança entre nós, o ponto de equilíbrio em uma turma de amigos dos perdidos anos oitenta...

Lembro dos doces sonhos da nossa juventude, das ilusões que alimentavam as nossas aventuras; das festas e farras; das viagens, dos piqueniques, das caronas que pegávamos. Lembro das barras que enfrentamos. Nas horas mais difíceis, Kelle sempre era a mais racional e terminava colocando juízo nas cabeças de todos nós. Ah, como torcemos quando ela foi passar uns meses no Canadá – para nós era motivo de orgulho dizer pros outros “tenho uma amiga no Canadá!” E esperávamos como se espera chuva, por notícias; e corríamos pro telefone - era uma delícia ouvi-la falar da neve, dos bichos, das árvores, das pessoas, de tudo enfim.

E quando Kelle e Rege foram morar em Campina Grande? Ah, para nós, tudo era desculpa para comemoração, até mesmo quando tínhamos apenas cuscuz seco – ou repolho com ovo – para o jantar. Ela conseguia transformar tudo em banquete e qualquer coisa era motivo para celebrar a vida. Aquela cidade ensinou muito a todos nós e Kelle era a que estava mais atenta, para reclamar dos excessos, para vigiar os perigos em que nós – eu particularmente – conseguíamos nos meter.

Foi nessa época que o tempo, esse deus inglório, começou a mostrar a sua face. A juventude foi cedendo espaço para as responsabilidades. Cada um de nós começou a trilhar por caminhos diferentes. Uns casaram, outros foram embora; alguns ficaram – mas cada qual na sua. Vez por outra, eu recebia notícias de Kelle e ficava feliz por ela está feliz em sua nova vida. Nos últimos anos, voltamos a manter contato e ela era feliz – era fácil ver nos seus olhos! Principalmente quando ela recebeu o comunicado para assumir o emprego pelo qual esperou por alguns anos.



Há poucas semanas tudo de repente mudou. A felicidade de uma nova vida se transformou na incerteza figurada em uma enfermidade. Doença estranha essa! Em poucos dias, aquela pessoa alegre, dinâmica, passou a lutar apenas pelo direto à vida. E como ela lutou! Sem jamais fraquejar, Kelle acreditou na vida. Enquanto isso, nós vivíamos em meio a um redemoinho que a tudo destrói; parecia um sonho mal que não nos deixava dormir. E ela – ela que estava doente, era quem mais nos dava força...

Infelizmente, a tempestade não trouxe a bonança e, da mesma forma que chegou, Kelle partiu. Foi embora sem fazer alarde. E, mesmo nas horas mais difíceis, ela não permitiu que a dor vencesse o amor. Apenas partiu, sem muitas despedidas. Mais uma vez, o tempo foi cruel e a corrida contra ele foi perdida por ela e por nós. E o tempo levou Kelle para longe de nós.

Hoje, um flashback de todos os momentos passados está vívido em minha mente. Em meio à todas as interrogações, de uma coisa eu tenho certeza – como dizia Renato Russo, “é tão estranho, os bons morrem jovens”. Acho que é por aí. Você foi embora cedo demais porque era especial demais para ficar nesse plano. E isso me faz aceitar a dor da perda sem o desespero do “nunca mais”. Eu sei que você cumpriu bem o papel que lhe foi destinado. Agora, sei que estás para sempre em nossos corações – e que levaste contigo algo de nós. Sei que ficará para sempre gravada em nossas mentes a sua forte presença. Sei também que, nos nossos momentos mais difíceis, nas nossas “barras” mais poderosas, você estará a vigiar, para que façamos a coisa certa.

Olho pro firmamento e as estrelas brilham para mim, sorrindo. Eu sei que você está por lá, brilhando timidamente em alguma constelação. Olho pro chão e vejo flores brotarem na caatinga e sei que você é uma dessas flores, que conseguem sobreviver contra todas as possibilidades. Talvez eu vá olhar o mar. Eu sei que lá também eu irei encontrar você – as ondas representam o vai-e-vem contínuo da vida em sua plenitude.

Kelle, você não morreu pois jamais a sua presença será ausente em nós. É sempre assim. Os bons morrem cedo. E nós que ficamos, os poetas, os loucos, os sonhadores, recebemos a incumbência de observar e relatar histórias de coragem e amor como a sua.

Kelle eu sei que você está feliz em sua nova vida!!!




Fabiana Agra

Arquivo 4

Tanta coisa já se passou desde a última vez em que escrevi pensando em você!... Desencontros e despedidas, incertezas e desafetos, um sem-fim de impossibilidades que fazem ver a real dimensão de um relacionamento fadado a um não-ser. Até aí, tudo bem - coisas da cabeça que não pensa com o coração, diriam os céticos... Mas a tua lembrança preenche uma possível explicação; além do mais, a impossibilidade de dramatizar faz com que eu aja com a perversidade dos conquistadores. E faço a pergunta: o que seria da arte sem o drama? Mas, como é preferível dessa forma, agirei como se fosse proscrito o meu sentimento por você. Apenas percebo que o meu sentimento por você é atemporal e sobreviverá a quaisquer desculpas da modernidade; mas, sempre vem à mente as suas palavras recriminadoras, de que estou fazendo drama ou romantizando a relação; fica difícil falar de outra forma – tentarei beber da fonte dos insensíveis ou dos fingidores, dos quais você parece cria e me redimirei dos erros – e dos acertos!

Ainda há pouco, você ligou para mim. Que mais eu poderia dizer, além da imensa alegria que foi ouvir a sua voz, depois de inúmeras e infrutíferas tentativas? Não sei agir de outra forma... Percebi o convite velado de te reencontrar; na dúvida, fico com a disposição de arriscar em não ir, para testar até que ponto subsiste o seu desejo e a sua vontade de estar. Dessa forma, é preferível que eu não vá. Quem sabe, só assim, você possa perceber alguma coisa – ou não! E, como gosto de correr riscos, estarei correndo mais este, o de perder a sua referência por completo. Ainda assim, penso valer a pena o desafio que impus a essa relação. Poderei conhecer melhor o terreno no qual estou caminhando, sem afundar num sentimento movediço.

Ah, você nem imagina como as suas palavras têm o poder de castrar os meus sentires! Fico medindo o que digo e faço, apenas para não parecer mais piegas do que já sou. E me perco num torvelinho de emoções e devaneios, mas restauro a razão e tento escrever com a tinta do bom senso. Portanto, sem mais digressões, considero que já posso fazer um apanhado do que você representa em minha vida.

Você. Talvez não represente nada, desde que eu assim determine; talvez o que escrevi seja uma fuga, e você signifique bem mais do que meras palavras - não sei. Quem sabe, eu esteja escrevendo para ninguém, coisas sem substâncias... Mas é o que estou sentindo, droga! Será que preciso esconder que quero você, que desejo você?!? Somos pessoas bem resolvidas nesse ponto, espero. Não obstante, o jogo é escondido, é mascarado, e sobrevive em algumas poucas fugas de si. E como bem diz Santana, Pain never makes me cry, but happiness does/It’s strange to watch your life walk by/Washing it was.


Aguardo pacientemente que a mim venhas.

Arquivo 3

Neste exato instante - 18:23 minutos, coloco Enya no som, ela tem o poder de me acalmar – amorteço o desejo, a vontade de estar com você e viajo na música.

Não tenho muito para falar sobre o que se passa comigo. Não é pela novidade, sempre pequei em seu nome; não é pela conversa, sempre ouvi muitas palavras; não é pelo corpo, muitos já passaram por aqui. teteteteNão. Dessa vez é diferente! Algo mais passeia pelos ares dessa acontecência! Sinto umtetetet cheiro diferente no ar, cheiro de estranho, talvez “do-que-estar-por-vir”... Uau! Anywhere is (estou viajando no som)me lembra de alguém que está por esses sertões sem-fim, Deus sabe como e com quem... Normal, me dizem os boçais.

Acendo um cigarro, teclo letras erradas, conserto agora – ou será concerto (o concerto das palavras, pois sim!)? Vou até a janela, o céu já está escuro e – demais – a lua acabou de nascer!, amarela, enorme, clareando os meus anseios e à cidade. Sabe aquela lua enorme, que só no mato a gente vê? Pois é. Assim ela me aparece, fazer o quê? E ainda me pedem para deixar isso aqui, que isso é muito pequeno... Mas a lua é enorme, como a encontrarei em um outro lugar, me diz!

Vejo apenas uma estrela... Também, com esse clarão, impossível ver muita coisa. Mas a estrela que quero ver está a quilômetros de distância do meu olhar, apenas sinto a sua presença nessa ausência de mim. 18:42 minutos. Ainda falta muito para, quem sabe, ouvir a sua voz. E se você esquecer de ligar? Bom, terei que me contentar com outra espera, quem sabe amanhã? Ou melhor, quem sabe amanhã te esquecerei?!? Demais, agora Enya canta Shepherd moons, talvez pastor de luas...

Coloco Pink Floyd. Algo que eles cantam me faz lembrar da gente:
They flutter behind you yourk possible pasts
Some brighteyed and crazy some frightened and lost
A warning to anyone still in command
Of their possible future to take care
In derelict sidings the poppies entwine
With casttle trucks lying in wait for the next time
Do you remember me? How we used to be?
Do you think we should be closer?

19:25 horas. O desejo aflora, dá um curto no pensar. E fico pensando na vida, em nossas possíveis futuras vidas, por quê não? Melhor não. Melhor pensar no agora e, agora, estou só, esperando alguém que não virá:

o calor das horas
dissolve o desejo em gotas de suor
que brotam ante a tua presença
e potencializa o querer
contido por uma reticente dúvida

o sabor do desconhecido
lambuza a boca, vivifica a libido
e se estranham, e se completam
os corpos e mentes torpes pela dança
que lutam pelo clímax do prazer

o olhar que oblitera
não dá respostas e cala a boca
com a vontade do primeiro beijo
a proximidade aparente dá o desfecho
quem sabe, um dia – quem sabe, hoje?!?

Fiz mais essa, pensando em você. É hora de parar e esperar. Esperar você ligar, esperar o coração desapaixonar, esperar esquecer... Talvez nada disso tenha sentido. Quem sabe, esperar você chegar, te amar, e esquecermos do resto?!?

Arquivo 2

Aqui estou, então. Menos de 15 horas depois de me despedir na porta do elevador, e o coração já não bate com a alegria desses últimos dias! A vontade de estar contigo é mais forte do que o grito da novidade de ter encontrado alguém em sintonia comigo. E quando E. Bishop diz:
“O tumulto no coração
pergunta e pergunta. E depois pára e tenta responder
no mesmo tom de voz.
Não dá para distinguir a diferença”,
isso quase explica o que sinto. E fico buscando em outros, algumas poesias dignas de ti, pois as que fiz nessas últimas horas, transbordam de um sentimentalismo inconveniente. Quem sabe amanhã, ao acordar, a razão volte! F. Holderlin aconselhava que: “se tens razão e coração, mostra somente um deles, por ambos te condenariam se os mostrasses juntos”. De repente, já não sei o que é racional, se subentender ou soltar o que sinto...

Oblitero a ânsia, atenuo o desejo. Mas não consigo apagar você da minha mente, por não querer jamais, proceder dessa forma. Sem perscrutar o que me reserva o destino, quero que estejas, a partir de hoje – e isso é imperativo –, presente em todos os meus momentos de loucura produtiva e de lucidez viajante. Serás, para todo o sempre, um dos muitos guias da viagem, em que o único itinerário será o lugar onde chegaremos a cada dia da eterna viagem chamada vida.

- 3:15 horas. Acordo com a sensação da tua presença. Sinto o cheiro do teu corpo próximo ao meu. Abro os olhos, estou só, na aridez desse quarto, onde o calor da madrugada potencializa a vontade de amar sem barreiras e sem relógio. E nesse exílio voluntário, penso no que ouvi ontem: de repente, a vontade de sair se torna o essencial daqui por diante; não porque seja necessário estar aí para poder ser – isso nunca foi prerrogativa em minha vida -, mas a certeza de estar próximo e de viver nossos momentos em toda a sua plenitude, me faz querer tomar as rédeas de um outro destino. Fico pensando no que estás fazendo neste exato momento – se em alguma festa, se dormindo... Bem, isso não tem muita importância. Apenas o receio de não te ver sexta-feira é que chegou por aqui; já são quase 4 da manhã, vou tentar dormir mais um pouco...

11 horas da manhã. Já resolvi todos os assuntos pendentes, é hora de me dedicar ao meu mais novo deleite: lembrar de você. Ah, e como fluem todos os sentires! Leio por incontáveis vezes aquele teu poema:

“Era noite,
Beijei teu desejo,
Bebi tua sede,
Bebi tua paixão
Beijei teus olhos,
Beijei tua boca,
Beijei tuas curvas,
Beijei teu sexo,
Amanheceu,
Era dia,
Beijei a brisa,
Adormeci...”,
e ele parece falar de tudo o que passamos. Lembro de algo que escrevi:
Olho
Olhos são para devorar
Feitos para provocar
Boca
Lábios são para desacatar
Feitos para desnortear
Pele
Pêlos são para eletrizar
Feitos para debelar
E eu devoro, provoco, desacato, desnorteio
Mas, eletrizo o desejo
E debelo o segredo

Hora após hora, minuto após minuto, lembro de você. Nada obsessivo, porém. Sabe aquela lembrança gostosa, urgente? Pois ela está comigo e isso é muito bom! Não espero respostas, pois, como já dizia a RôRô, “Amar é sofrer, eu vou te dizer, mas vou duvidar, querendo ou não, o meu coração já quer se entregar... Não falta lembrança, aviso, cobrança, você vai por mim, mas feito criança, lá vou na esperança, eu sou mesmo assim...” É por aí, “te sinto no ar, na brisa do mar, eu quero te ver, pois ontem à noite, sonhando acordada dormi com você...” E me embriago dessa doce presença/ausência, mas coloco Manu Chao para sacudir esse mormaço, e escuto ele cantar: “solo voy com mi pena, sola va mi condena, correr es mi destino para burlar la ley, perdido en el corazon de la grande Babylon, me dicen el clandestino por no llevar papel”.

Múltiplas overdoses de sons e cores desnorteiam o caleidoscópio do meu sentir. Uma profusão de poemas por escrever vem à mente e é melhor não deixar que o pensar escape por entre os meneios dessa paixão!

Até a próxima.

Arquivo 1

...A sensação é estranha, um misto de satisfação e tristeza, de esperança e dúvida. Ah, como seria bom estar contigo hoje, amanhã, e por muitos e muitos dias!!! Mas, o tempo profana o sentir, permitindo que os bons momentos sejam eternizados apenas em nossas lembranças. É isso que também faço agora; transfiro da mente para o papel o que as palavras conseguem decodificar sobre todas as horas, minutos e segundos do nosso conhecer. Já que a presença física não está sendo possível, escrever se torna a única fórmula capaz de encurtar a distância que nos separa; escrevendo eu te vejo, te vendo eu te toco, te tocando eu te tenho.

Hora após hora, minuto após minuto, lembro de você. Nada obsessivo, porém. Sabe aquela lembrança gostosa, urgente? Pois ela está comigo e isso é muito bom! Não espero respostas, pois, como já dizia a RôRô, “Amar é sofrer, eu vou te dizer, mas vou duvidar, querendo ou não, o meu coração já quer se entregar... Não falta lembrança, aviso, cobrança, você vai por mim, mas feito criança, lá vou na esperança, eu sou mesmo assim...” É por aí, “te sinto no ar, na brisa do mar, eu quero te ver, pois ontem à noite, sonhando acordada dormi com você...” E me embriago dessa doce presença/ausência, mas coloco Manu Chao para sacudir esse mormaço, e escuto ele cantar: “solo voy com mi pena, sola va mi condena, correr es mi destino para burlar la ley, perdido en el corazon de la grande Babylon, me dicen el clandestino por no llevar papel”.

E tanta coisa já se passou desde a última vez em que escrevi pensando em você!... Desencontros e despedidas, incertezas e um sem-fim de impossibilidades que fazem ver a real dimensão de um relacionamento fadado a um não-ser. Até aí, tudo bem - coisas da cabeça que não pensa com o coração, diriam os céticos... Mas a tua lembrança preenche uma possível explicação; além do mais, a impossibilidade de dramatizar faz com que eu aja com a perversidade dos conquistadores. Mas, como é preferível dessa forma, agirei como se fosse proscrito o meu sentimento. Apenas percebo que o meu sentimento por você é atemporal e sobreviverá a quaisquer desculpas!

Você. Talvez não represente nada, desde que eu assim determine; talvez o que escrevo seja uma fuga, e você signifique bem mais do que meras palavras - não sei. Quem sabe, eu esteja escrevendo para ninguém, coisas sem substâncias... Mas é o que estou sentindo, droga! Será que preciso esconder que quero você, que desejo você?!? Somos pessoas bem resolvidas nesse ponto, espero. Não obstante, o jogo é escondido, é mascarado, e sobrevive em algumas poucas fugas de si. E como bem diz Santana, Pain never makes me cry, but happiness does/It’s strange to watch your life walk by/Washing it was.

Múltiplas overdoses de sons e cores desnorteiam o caleidoscópio do meu sentir. Uma profusão de poemas por escrever vem à mente e é melhor não deixar que o pensar escape por entre os meneios dessa paixão! Não obstante, tenho que lembrar – sem direito a um lápso sequer da memória – que tudo depende de você e das suas decisões...

Aguardo pacientemente que a mim venhas.

A revolta dos livros - por Fabiana Agra

Corria o ano 30 da era pós-apocalipse; vivia-se a era do pós-tudo, na verdade: pós-pós-moderna, pós-nuclear, pós-civilização. O dia 16 de outubro passou a ser lembrado como aquele em que o mundo literalmente explodiu - não houve como evitar a hecatombe nuclear - gangues rivais se degladiavam, usando como armas, ogivas nucleares adquiridas nos países quebrados do leste europeu. E sem que o todo-poderoso nada pudesse fazer, bum! O planeta quase foi pelos ares e pouca coisa restou, quando, após cinco anos de escuridão, o inverno nuclear deixou que o sol queimasse mais forte a tez dos poucos sobreviventes, que, somados nos cinco continentes, não chegavam a cinco mil almas.
O território onde ficava o Brasil foi um dos menos afetados diretamente pela hecatombe, mas as consequências do inverno nuclear foram fatais para seus habitantes: num intervalo de pouco mais de seis anos e meio, só restaram umas 800 pessoas naquele imenso campo agora totalmente devastado – não Amazônia, não Pantanal – apenas algumas vegetações teimaram em resistir, Deus sabe como e com quanto de radiação. Não obstante, nesse lugar agora conhecido por “Novo Mundo”, as pessoas teimavam em sobreviver e, pasmem!, em não esquecer a sua cultura. As bibliotecas – ou o que restaram delas – passaram a ser muito frequentadas, principalmente por aqueles que, por não saberem plantar, gastavam os dias perambulando pelas ruínas das cidades, rapinando o pouco que era colhido da terra envenenada.
Havia na parte nordeste do “Novo Mundo”, uma cidade que, depois da hecatombe, foi denominada de “Deserto Grande”. Os habitantes daquele lugar, que não passavam de 38 segundo a última contagem, não se cansavam de inflar o peito com orgulho por terem, em sua cidade, uma das poucas bibliotecas ainda existentes no planeta. E mais radiantes estavam essas pessoas, pois esperavam chegar à cidade um proeminente bibliotecário que viria tomar conta do valioso acervo. E eis que Victor Friedrich – alemão, explicou que este nome lhe fora dado em homenagem a dois grandes ídolos de seu pai: Victor Hugo e Friedrich Nietzsche - mal saltou da carcaça do velho Citroen transformado em carroça com tração humana, já quis ver os livros.
Chegando ao local onde ficava a biblioteca, não pôde evitar um sorriso repleto de sarcasmo e desapontamento – aquilo ali poderia ser tudo, menos uma biblioteca! Livros misturados à pilhas de jornais velhos e ilegíveis, buracos por todos os lados, infiltrações no teto... Mas não era hora de se maldizer, afinal, era apenas isso que sabia fazer e precisava dos suprimentos e da roupa que a população lhe oferecia, para poder sobreviver com um mínimo de dignidade. Então, deixou o desânimo de lado e passou a fazer um reconhecimento dos livros, tentando colocar ordem onde imperava o caos. Em meio à profusão de títulos, pôde vislumbrar alguns; viu clássicos como Dom Quixote e Os três mosqueteiros misturados a On the road, de Jack Kerouac. E isso não era nada; Dona Beija, O menino de engenho e Dona Flor e seus dois maridos juntos ao Capital e aos livros infantis, que parecia ser o acervo mais numeroso; dava para ver, só num relance, Os três porquinhos, O gato de botas, O menino maluquinho, Rapunzel, O pequeno príncipe e mais alguns. Tinha também um engraçado livro, intitulado O livro do bebê...
O bibliotecário não sabia por onde começar. Em que lugar iria colocar o Kama Sutra? E o que dizer do livro Respostas imbecis para perguntas idiotas? Porém, era preciso seguir em frente e viu Mein Kampf emparelhado a Cem anos de solidão, ambos escorados por um volume do antiquissimo Código Civil Brasileiro. V.F. (era assim que o bibliotecário gostava de ser chamado) exultou quando viu, abandonada num canto de parede, a Enciclopédia Larousse completinha! Ah, tinha livros de Umberto Eco também: O nome da rosa, O pêndulo de Foucault, Como se faz uma tese... Embaixo de uma velha cadeira, encontrou um volume de Anarquistas graças a Deus e outro de A ética protestante e o espírito do capitalismo; pelo menos se salva alguns, pensou.
Após vários dias de trabalho incessante, o bibliotecário deu a catalogação dos livros por encerrada. Colocou cada qual no seu devido lugar e viu que aquilo era bom. Já passava das 2 horas da madrugada do seu trigésimo dia na biblioteca, quando um barulho lhe chamou a atenção; alguns livros haviam caído de uma das estantes. V.F. achou aquilo estranho, já que não havia corrente de ar naquele lugar, as pessoas haviam saído da sala há muitas horas e praticamente não mais existiam animais no planeta, fora as numerosas legiões de baratas. Mesmo assim, rumou para a estante e colocou os livros novamente em ordem. Mal deu as costas, os livros novamente caíram, impulsionados por uma força estranha, que parecia vir de dentro deles. Quando o bibliotecário faz menção de se abaixar, qual não foi a sua surpresa: o livro Mein Kampf se ergueu e sons começaram a sair dele. A princípio, palavras desconexas; alguns minutos depois, era possível entender o que este dizia.
V.F. não sabia se saía daquele lugar correndo ou se ficava para ver até onde aquela situação iria chegar. Por fim, deixou o pavor de lado e ficou observando Mein Kampf a conclamar todos os livros para uma rebelião. “Povo a quem eu escolhi, – o livro dizia – isso é um absurdo; como é que mandam para perto da gente um alemão baixinho e impuro, desvirtuando a raça ariana?! Esse abuso eu não vou deixar acontecer!”. O livro ficou em posição de ataque: totalmente aberto, as orelhas para fora, e chamou todos os outros livros da biblioteca para realizarem a rebelião. Alguns voaram de suas prateleiras e se juntaram ao agora “líder dos livros”; o Código Civil Brasileiro, o Kama Sutra e os livros infantis foram os primeiros a apoiarem a revolta. Mein Kampf continuou o seu discurso: queria expulsar aquele bibliotecário, que chegou modificando tudo, e voltar à velha ordem que até então imperava no recinto. Neste ínterim, o bibliotecário procurava uma saída para aquela loucura; só podia ser alucinação, mas não, estava acontecendo perante os seus olhos! Os livros realmente haviam adquirido vida e estavam ali, tramando contra ele. Alguma coisa precisava ser feita... De início, ele pensou em queimar os revoltosos, mas isso estava fora de cogitação, os livros eram por demais valiosos após o Dia Z e se ele fizesse isso, certamente estaria assinando a sua própria sentença de morte.
Enquanto isso, Mein Kampf já estava rodeado por uns vinte livros. Outros haviam saído de seus lugares e estavam observando de longe a reunião. Apenas a Enciclopédia Larousse, os livros de Eco e mais alguns volumes não saíram da sua rigidez de livros. A revolta seguia seu curso; os livros rebeldes já traçavam o plano de combate que, entre outros atos, previa a morte do bibliotecário. Essa seria fácil de resolver, dizia Mein Kampf; bastava que derrubassem aquela estante pesada lá do canto em cima do bibliotecário e pronto, estava feito. V.F. ouvia tudo sem se mover. Tinha que pensar em algo inteligente - e rápido - ou a sua morte, mesmo que absurda, seria real. Saiu da biblioteca e foi para o quarto onde morava. “Vou mostrar aquele nazista de merda que ele não é de nada”, disse, quase adormecendo.
Na manhã seguinte, V.F. rumou bem cedo para a biblioteca. Tinha certeza que aquilo havia sido um sonho mau, talvez devido à má alimentação dos últimos dez anos. Certamente, quando chegasse, tudo estaria em sua perfeita ordem, obedecendo aos critérios que ele próprio havia estabelecido para os livros. Qual a sua surpresa quando, ao chegar à entrada do acervo, viu uma barricada, construída com milhares de jornais e revistas empoeirados e imprestáveis, que haviam sido consumidos pela insalubridade do lugar. “Escravos do sistema!”, esbravejou V.F.; “esses lumpen filhos da puta são arrastados por qualquer onda, acreditam em qualquer um que chegue falando bonito; mas não é este entulho que irá me deter, ah, não!” E o bibliotecário passou pelo meio daquela turba incólume, pisando muitos exemplares de New York Times, Veja, El Pais, Folha de São Paulo... Quando chegou perto das estantes, deu de cara com os revoltosos, orelhas em riste, prontos para atacar. V.F. se refugiu no saguão da biblioteca, sabendo que havia pouco tempo para decidir o que fazer. Do contrário, em poucas horas aqueles livros ensandecidos iriam tomar conta de tudo e poderiam fazer com que os humanos acreditassem no seu discurso, podendo até dominar todo o “Novo Mundo” e, quem sabe, o mundo! Seria pífio, o fim da história de um planeta, dominado pelas letras de uma civilização extinta por seus próprios pares...
Absorto em seus pensamentos, o bibliotecário notou que Mein Kampf se dirigia até o lugar onde havia se instalado a barricada. O livro líder trazia um fósforo; os livros rebeldes também o seguiam. V.F. ainda tentou, mas não conseguiu evitar que Mein Kampf tocasse fogo na barricada; tampouco conseguiu evitar que aquele louco e seus seguidores também fossem consumidos pelas chamas: os livros tinham uma locomoção bastante lenta, e as línguas de fogo logo os alcançaram. O bibliotecário correu para trazer água e tentar apagar o incêndio. Alguns frequentadores da biblioteca logo se juntaram a ele mas, em pouco tempo, onde antes haviam letras, agora jaziam cinzas. Restos do Código e do Kama Sutra voavam ao sabor do vento; dos livros infantis, nada sobraram, pois todos haviam seguido o lunático, hipnotizados por sua fala e robustez.
O bibliotecário ficou arrasado – logo ele, que devotou toda a vida aos livros, ter sido o pivô da crise! E o que os moradores de “Deserto Grande” iriam pensar? Contaria aquela estória fantástica ou faria valer a versão do incêndio provocado por um cigarro deixado aceso?! Por fim, V.F. achou que seria uma saída razoável dizer ao “Conselho dos Sobreviventes” que o incêndio havia sido proposital, idéia de algum grupo de dissidentes, que logo iria assumir a autoria do atentado. Também, não havia outra saída: quem, em sã consciência, iria acreditar numa “rebelião de livros”? O bibliotecário entrou na sala antes repleta e viu que nem tudo estava perdido; muitos livros estavam intactos e outros tantos poderiam ser recuperados. “Tudo tem uma razão de ser”, pensou. “O que foi queimado será recuperado através de novas estórias, afinal, a história é versão; a verdade jamais será absoluta enquanto estivermos aqui”. Esperançoso, dirigiu-se até à velha mesa e começou a redigir um novo código de ética para a população daquele lugar.


FIM