domingo, outubro 21, 2007

A mim que desde a infância venho vindo
como se o meu destino
fosse o exato destino de uma estrela
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem
amaria chamar-se Eliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.

Adélia Prado
A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância.

Ana C.

Versões de circunstância

a ausência habita a casa
quarto a quarto a sala cozinha varanda corredor

cerra portas aos banheiros
escusa-se à louça na pia e à barata que agoniza
de papo pro ar

e enquanto bethânia canta o mar de caymmi cae
tano e sophia

recolhe-se a ausência ao telefone (acumpliciando
-te o silêncio) impedindo-o de tocar
(marcia maia)
Passamos a vida inteira cumprindo o que esperam de nós, respeitando os sinais de trânsito, pagando os impostos em dia, decorando senhas, sendo gentis, solidários, pacientes, chegando pontualmente ao serviço, sendo ótimos pais, ótimos filhos, fazendo a casa funcionar, economizando centavos, cuidando da higiene, ouvindo desaforos e grosserias de quem não nos compreende, e sem esboçar reação alguma, tudo para contribuir com a paz no mundo. Levantamos todo santo dia com disposição: da cama pro banho, do banho pro trabalho, dia após dia sem exaurir-se, porque faz parte da vida seguir as regras e ser um sujeito decente, e não há nada de errado com isso ¿ mas não há só isso.

E o nosso lado marylin monroe, pitbull, al capone, serial killer, james dean, sharon stone, viking, cinderela, michael moore? Tudo o que nos fascina, horroriza e diverte: por que não experimentar sem sair do lugar?

Sumi

“Sumi porque só faço besteira em sua presença, fico mudo
quando deveria verbalizar, digo um absurdo atrás do outro quando
melhor seria silenciar, faço brincadeiras de mau gosto e sofro
antes, durante e depois de te encontrar.
Sumi porque não há futuro e isso não é o mais difícil de
lidar, pior é não ter presente e o passado ser mais fluido que o ar.
Sumi porque não há o que se possa resgatar, meu sumiço é
covarde mas atento, meio fajuto meio autêntico, sumi porque
sumir é um jogo de paciência, ausentar-se é risco e sapiência,
pareço desinteressado, mas sumi para estar para sempre do seu
lado, a saudade fará mais por nós dois que nosso amor e sua
desajeitada e irrefletida permanência.”
O único silêncio que perturba,
é aquele que fala.

E fala alto.

É quando ninguém bate à nossa porta,
não há emails na caixa de entrada
não há recados na secretária eletrônica
e mesmo assim, você entende a mensagem

Tristeza

tristeza é quando chove

quando está calor demais

quando o corpo dói

e os olhos pesam

tristeza é quando se dorme pouco

quando a voz sai fraca

quando as palavras cessam

e o corpo desobedece

tristeza é quando não se acha graça

quando não se sente fome

quando qualquer bobagem

nos faz chorar

tristeza é quando parece

que não vai acabar



(Martha Medeiros)

quinta-feira, outubro 11, 2007

Doces tragédias

Doces tragédias são aquelas que sofremos nos livros. São nossos choros de cinema, no conforto real da poltrona e pipoca. Quando a luz se acende, e a vida volta, vemos que tudo passa: o filme, o susto, a dor. Coisa boa é sofrer feliz.

Doces tragédias são os medos de criança. Bicho papão, sombra no teto, bruxa de fita K7. Medos cruéis que nos legam o mal da formação — virarmos adultos; essa gente besta que abre o guarda-roupa sem susto. E que ri se alguém tem medo do escuro. Não é do escuro; é das coisas terríveis que pinta neste pano preto a nossa imaginação. Por isso é que quando crescemos perdemos o medo do escuro: vai-se, na verdade, a imaginação.

Doces tragédias são as das canções. Do amor perdido, amor traído, das paisagens inúteis e dos boleros. Já conheço os passos dessa estrada, sei que vai minha tristeza e diz pra ela que vou voltar. Um tom menor é triste mas é bom: sofre sem sofrer. Canções são lágrimas de festim.

Doces tragédias eram as separações de Vinícius de Moraes. Primeiro porque eram as dele, e não as nossas. Segundo porque viravam poesia. Vinícius viveu num tempo em que coisas que não servem para nada, como a poesia, serviam para alguma coisa.

Percebi isso quando reli, recentemente, o Grande Sertão: Veredas. Todo mundo conhece a história. O sertanejo Riobaldo se apaixona por outro homem, Diadorim. Passa o livro inteiro encafifado pois “gostava de Diadorim de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”. No fim do livro, Diadorim morre. Só então Riobaldo descobre que Diadorim não era homem, era uma mulher, moça perfeita. “A Deus dada, pobrezinha”. Poucas páginas depois, surge o registro de batismo dela: “Em um 11 de setembro da era de 1800 e tanto...” Isso mesmo, um 11 de setembro.

Houve uma época de doces tragédias, quando o jagunço de tinta e papel descobria verdades de mentira. Esse tempo morreu. Diadorim morreu. Vinícius morreu. Tom Jobim também.

Mas eu ainda tenho meu medo do escuro. Envergonhado, mas tenho. E, quando acendo o abajur para dormir mais tranqüilo, a beleza daquele tempo volta a existir. Ele continua. Como diz Guimarães Rosa: “a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente”.

Publicado no Guia em O Estado de S. Paulo

André Laurentino

Cicatriz de Penélope

o dia se arrasta como um pêndulo transfigurado
luz imóvel de outono no quarto em desordem
sempre busco pela casa algo que não sei o que é
mas sei que sobra, dele

velha melodia o ronco barulhento do seu carro
amor
ficar aqui até que o vento refresque minha alma de tantas curvas
até que chova e cheire a terra e passem barcos e nuvens

o homem que me sorriu no elevador voltou
em outras cores
não era assim que eu queria que você me olhasse?

conversa de mulheres, bordar
e desbordar
ainda há pouco retoquei cena por cena
o projeto do romance. assim não vale?
alisar as plumas antes? máscara de artista,
me recuso

sinto desejo e sono. estremeço ao menor zumbido.
mulher,
pássaro penteando as asas, sempre.

não sei se quando ele me beija pensa em palmeiras suspensas" tristeza que carrego, sobra no tempo, ameaça. virgular é feminino

você pensa que me entende? eu não quis dizer ao mesmo tempo:
alma e corpo
faça isso, pegue a minha mão, não faz tanto frio.
tento dizer que colecionar pedras em segredo não fica bem,
baby

minhas lágrimas patéticas? dolores duran escreveu "por causa de você" com o lápis de sobrancelha. uso esse vestido vaporoso
com o mesmo lirismo.
caminho como se assobiasse e não reparo
no homem que me deseja parado no sinal.

Ledusha

Caro André

Não sei por onde você anda. Mas, como de vez em quando você está nesta página — e só de vez em quando, em raros raios de inspiração — achei melhor deixar meu recado aqui.

Peço desculpas por não poder aparecer sempre que deveria, mas é que a vida anda corrida (a minha não, a sua; que além do mais deu para viver entre parênteses) e quase nunca consigo um encontro. Se você está me lendo, é sorte.

Eu sou o você com tempo, ou seja, o que já não é. Aquele que vive mais que as três horas, entre a novela e a meia-noite, quando você dorme e acorda sem mim, ou me deixa em algum canto da pressa, antes de ir ao trabalho. Eu sou o que observa na janela, e dita assunto para suas mãos apressadas preencherem linhas, na vã esperança de, em relendo-as depois, vivê-las ao menos uma vez. Eu vivo por você, enquanto você corre sozinho e só. E quando alguém pergunta “como vai?” sou eu quem conhece a resposta. Mas por educação, André, acho melhor não contar.

Você não sabe dos meus dias, do que ando lendo, com quem converso as conversas que você adia. Sou eu quem vai aos encontros nas mesas vazias, nos almoços só prometidos, nas festas canceladas. O bate-papo no café, a risada de corredor, um site de futebol. Ou a moça que tropeça na rua, o pardal no fio, um formato de poça d’água, o jeito de alguém folhear a revista.

Minha vida, André, é discreta. Ela se esconde na concha e se embrenha por entre as frestas dos gritos, serpenteando ao redor de buzinas, escapando aos compromissos e planos. É imensa como um fio de cabelo. Por onde anda a sua? Em que restaurante, em que bolso de calça, dentro de qual guarda-chuva você a esqueceu?

Veja, o espaço está acabando; não temos muito tempo. Rápido. Marque um cinema, ou melhor, não marque. Mas vá. Tome um chopp, convide para a mesa um amigo distante que provoque silêncios, desertos de intimidade, e faça destes espaços os saltos para a volta.

Anote nas margens de livros, veja fotos antigas, leve um sapato ao conserto, compre frutas, perca tempo. Ao menos uma vez por dia, faça uma coisa que não sirva para alguma coisa. Eu moro nessas inutilidades, e lá estarei, esperando.

Desculpe a maneira um tanto piegas, detesto quebrar suas lantejoulas de leonino. Mas quando percebi seu olhar de papel, um ollhar farto e branco, resolvi intervir. E também porque, justo esta semana, você passou dos limites. Você conseguiu esquecer, André, o próprio aniversário.

Um forte abraço.

Publicado no Guia em O Estado de S. Paulo
André Laurentino

quarta-feira, outubro 10, 2007

Receita para mal de amor

Minha querida amiga: Sim, é para você mesma que estou escrevendo
- você que aquela noite disse que estava com vontade de me pedir conselhos, mas tinha vergonha e achava que não valia a pena, e acabou me formulando uma pergunta ingênua:
.
-Como é que a gente faz para esquecer uma pessoa?
.
E logo depois me pediu que não pensasse nisso e esquecesse a pergunta, dizendo que achava que tinha bebido um ou dois uísques a mais..
Sei como você está sofrendo, e prefiro lhe responder assim pelas páginas de uma revista - fazendo de conta que me dirijo a um destinatário suposto.
Destinatário, destinatária...Bonita palavra: não devia querer dizer apenas aquele ou aquela a quem se destina uma carta, devia querer dizer também a pessoa que é dona do destino da gente. Joana é minha destinatária. Meu destino está em suas mãos; a ela se destinam meus pensamentos, minha lembranças, o que sinto e o que sou: todo este complexo mais ou menos melancólico e todavia tão veemente de coisas que eu nasci e me tornei.
Se me derem para encher uma fórmula impressa ou uma ficha de hotel eu poderei escrever assim: Procedência - São Paulo; Destino - Joana. Pois é somente para ela que eu marcho. No táxi, no bonde, no avião, na rua, não interessa a direção em que me movo, meu destino é Joana. Que importa saber que jamais chegarei ao meu destino?
Isso eu gostaria de lhe dizer, minha amiga, com a autoridade triste do mais vivido e mais sofrido: amar é um ato de paciência e de humildade; é uma longa devoção. Você me responderá que não é nada disso; que você já chegou ao seu destinatário e foi devolvida como se fosse uma carta com o endereço errado. Que teve alguns dias, algumas horas de felicidade, e por isso agora sofre de maneira insuportável. Então lhe aconselho a comprar um canivete bem amolado e afinar dezoito pedacinhos de pau até ficarem bem pontudos, bem lisos, perfeitamente torneados - e depois deixá-los a um canto. Apanhar uma folha de papel tamanho ofício e enchê-la com o nome de seu amado, escrevendo uma letra bem bonita, de preferência com tinta azul. Em seguida faça com essa folha um aviãozinho, e o jogue pela janela. Observe o vôo e a aterrissagem. Depois desça, vá lá fora, apanhe o avião de papel, desdobre a folha novamente (pode passá-la a ferro, para o serviço ficar mais perfeito e não haver mais nenhum indício da construção aeronáutica) e volte a dobrá-la, desta vez ao meio. Dobre outras vezes, até obter o menor retângulo possível. Então, com o canivete, vá cortando as partes dobradas até transformar toda a folha em minúsculos papeizinhos, tão pequenos que o nome de seu amado não deve caber inteiro em nenhum deles. Aí, apanhe todos aqueles pauzinhos que tinha deixado a um canto e, com os pedacinhos de papel, faça uma fogueira com o máximo cuidado até que restem somente cinzas. A seguir poderá repetir a operação...
.
-Adianta alguma coisa?
.
Por favor, querida amiga, não me faça esta pergunta. Nada adianta coisa alguma, a não ser o tempo; e fazer fogueirinhas é um meio tão bom quanto qualquer outro de passar o tempo.

Rubem Braga

Amizade sem trato

Dei para me emocionar cada vez que falo do amigos. Deve ser a idade, dizem que a gente fica mais sentimental. Mas é fato: quando penso no que tenho de mais valioso, os amigos aparecem em pé de igualdade com o resto da família. E quando ouço pessoas dizendo que amigo, mas amigo meeeeeesmo, a gente só tem dois ou três, empino o peito e fico até meio besta de tanto orgulho: eu tenho muito mais do que dois ou três. São uma cambada. Não é privilégio meu, qualquer pessoa poderia ter tantos assim, mas quem se dedica?

Fulano é meu amigo. Sicrana é minha amiga. É nada. São conhecidos. Gente que cumprimentamos na rua, falamos rapidamente numa festa, de repente sabemos até de uma fofoca pesada sobre eles, mas amigos? Nem perto. Alguns até chegaram a ser, mas não são mais por absoluta falta de cuidado de ambas as partes.

Amizade não é só empatia, é cultivo. Exige tempo, disposição. E o mais importante: o carinho não precisa - nem deve - vir acompanhado de um motivo.

As pessoas se falam basicamente nos aniversários, no Natal ou para pedir um favor - tem que haver alguma razão prática ou festiva para fazer contato. Pois para saber a diferença entre um amigo ocasional e um amigo de verdade, basta tirar a razão de cena. Você não precisa de uma razão, basta sentir a falta da pessoa. E, estando juntos, tratarem-se bem.

Difícil explicar o que é tratar bem. Se são amigos mesmo, não precisa nem falar, podem caminhar lado a lado em silêncio. Não é preciso troca de elogios constantes, podem até pegar no pé um do outro, delicadamente. Não é preciso manifestações constantes de carinho, podem dizer verdades duras, às vezes elas são necessárias. Mas há sempre algo sublime no ar entre dois amigos de verdade. Talvez respeito seja a palavra. Afeto, certamente. Cumplicidade? Mais do que cumplicidade. Sintonia?

Acho que é amor.

Oh, céus! Santa pieguice, Batman! Amor? Esta lenga lenga de novo?

Sério, só mesmo amando um amigo para permitir que ele se jogue no seu sofá e chore todas as dores dele sem que você se incomode nem um pingo com isso. Só mesmo amando para você confiar a ele o seu próprio inferno. E para não invejarem as vitórias um do outro. Por amor, você empresta as suas coisas, dá seu tempo, é honesto nas suas respostas, cuida para não ofender, abraça causas que não são suas, entra numas roubadas, compreende alguns sumiços, só que liga quando o sumiço é exagerado. Tudo isso é amizade com trato. Se amigos assim entraram na sua vida, não deixe que sumam.

Porém a maioria das pessoas não só deixa como contribui para que os amigos evaporem. Ignora os mecanismos de manutenção. Acha que a amizade é algo que vem pronto e que é da sua natureza ser constante, sem precisar que a gente dê uma mãozinha. E aí um dia abrimos a mãozinha e não conseguimos contar nos dedos nem dois amigos pra valer. E ainda argumentamos que a solidão é um sintoma destes dias de hoje, tão emergenciais, tão individualistas. Nada disso. A solidão é apenas um sintoma do nosso descaso.
Eu fico sabendo de notícias de amigos que voltam para suas casas. São notícias que me soam como pedras caindo no mar. Sei de amigos que sequer saem de suas casas. E ficam lá com suas mulheres, seus gatos e seus copos de whisky. Alguns pensam que eu, boêmio irredutível, posso sentir desprezo por amigos assim. Mas se tivesse que sentir algo, sentiria mesmo é inveja. Não que eu sinta, quero deixar claro. Mas se tivesse que sentir, seria algo perto desse sentimento mesquinho e bisonho. Ou vocês acham que eu não poderia invejar os seus sofás de quatro lugares? Lembro que um amigo ia casar e ele me perguntou o que devia comprar para sua nova casa. Eu recomendei cruelmente que comprasse um bom sofá. Era onde ele iria passar grande parte de sua vida e a maior parte de suas noites. Fui ainda mais cruel quando disse que ele devia comprar uma boa tv e ter um bom cachorro. Afinal esse seria o individuo que iria tratá-lo com carinho quando chegasse em casa. Crueldade boba de um sujeito inepto como eu, nada mais do que isso. O tipo de comentário cruel que costumo fazer e que pode gerar suspeitas de misoginia. Mas não é nada disso. É só crueldade gratuita de um sujeito inepto. Então sendo assim, porque não iria invejar o seu armário do banheiro com o casal de escovas de dente? Porque não iria invejar o meu amigo que vê o sol nascer resplandecente da janela de seu apartamento? Mal ando vendo o sol nascer. Quando percebo, ele já invadiu a porta do bar e só então eu noto que não estou com os meus óculos escuros. Enquanto alguns amigos meus tomam um farto café da manhã em casa e ganham um gentil beijo de suas mulheres, bebo um pingado no boteco da esquina e sou abordado por uma jovem prostituta.
“Eu te vi lá no bar.”
“Eu também te vi.”
“Então você tava me observando.”
“Não. Eu só te vi.”
Ela já tirando o seu celular e se preparando para anotar.
“Me dá o seu número?”
“Não. Porque eu te daria o meu número?”
“É que eu gosto de homens assim como você.”
“Que tipo de homem eu sou?”
“Mais velho. Gosto de homens mais velhos que fazem bem.”
“Eu não faço nada bem.”
E saio andando. E ela entra em um carro. Ela pareceu não entender. E tem o sol. E eu estou sem meus óculos escuros. E o pequeno quarteirão parece uma gigantesca quadra de Brasília. E eu mexo nos bolsos procurando a minha chave. O porteiro nunca está lá nesse horário. Parece que ele sempre tem algo pra fazer lá nos fundos do prédio. Sequer estranho a sarcástica coincidência. Apenas procuro as minhas chaves no bolso da calça entre os extratos bancários, os cartões usados da Tim, os folhetos de divulgação de peças de teatro e os comprovantes de depósito. Entro na minha kitchenete e a solidão me recebe com um sorriso benevolente. Passo os olhos sobre alguns quadrinhos do Azzarello, coloco “Californication” no aparelho de DVD e vejo o escritor querendo acertar os ponteiros com Deus. Adormeço deitado na rede totalmente encolhido embaixo do cobertor. Não tenho sequer direito de escolher os sonhos que passam na emissora do Sr. Orfeu Marinho. Um cara que acha que o clitóris fica logo abaixo da vagina. Um sujeito com incompetência para gostar de outros seres humanos. Um monstro que devora florestas tropicais e uma praia com um desfile de toalhas coloridas. Acordo sobressaltado e penso nos amigos que voltam para suas casas, suas mulheres, seus cachorros e seus copos de whisky. Quase posso vê-los em sua perene felicidade. Se fosse dado a sentimentos de inveja, sentiria algo parecido. Mas sou um cara sem talento para esse tipo de sentimento. Então penso que se ainda soubesse rezar, pediria pra que eles conseguissem. Eu queria sinceramente que eles conseguissem. Penso que alguém deve conseguir. Eles tem o seu mundo. Eu tenho apenas o meu lugar no mundo. E tem o sol entrando pela fresta da cortina. E tem a garrafa de água a quem eu recorro durante o sono a cada 30 minutos. E tem essa sensação estranha de combate perdido. De proximidade da lona. Ainda me sobra compaixão. Devo dormir com essa idéia feliz.