domingo, outubro 21, 2007

A mim que desde a infância venho vindo
como se o meu destino
fosse o exato destino de uma estrela
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem
amaria chamar-se Eliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.

Adélia Prado
A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância.

Ana C.

Versões de circunstância

a ausência habita a casa
quarto a quarto a sala cozinha varanda corredor

cerra portas aos banheiros
escusa-se à louça na pia e à barata que agoniza
de papo pro ar

e enquanto bethânia canta o mar de caymmi cae
tano e sophia

recolhe-se a ausência ao telefone (acumpliciando
-te o silêncio) impedindo-o de tocar
(marcia maia)
Passamos a vida inteira cumprindo o que esperam de nós, respeitando os sinais de trânsito, pagando os impostos em dia, decorando senhas, sendo gentis, solidários, pacientes, chegando pontualmente ao serviço, sendo ótimos pais, ótimos filhos, fazendo a casa funcionar, economizando centavos, cuidando da higiene, ouvindo desaforos e grosserias de quem não nos compreende, e sem esboçar reação alguma, tudo para contribuir com a paz no mundo. Levantamos todo santo dia com disposição: da cama pro banho, do banho pro trabalho, dia após dia sem exaurir-se, porque faz parte da vida seguir as regras e ser um sujeito decente, e não há nada de errado com isso ¿ mas não há só isso.

E o nosso lado marylin monroe, pitbull, al capone, serial killer, james dean, sharon stone, viking, cinderela, michael moore? Tudo o que nos fascina, horroriza e diverte: por que não experimentar sem sair do lugar?

Sumi

“Sumi porque só faço besteira em sua presença, fico mudo
quando deveria verbalizar, digo um absurdo atrás do outro quando
melhor seria silenciar, faço brincadeiras de mau gosto e sofro
antes, durante e depois de te encontrar.
Sumi porque não há futuro e isso não é o mais difícil de
lidar, pior é não ter presente e o passado ser mais fluido que o ar.
Sumi porque não há o que se possa resgatar, meu sumiço é
covarde mas atento, meio fajuto meio autêntico, sumi porque
sumir é um jogo de paciência, ausentar-se é risco e sapiência,
pareço desinteressado, mas sumi para estar para sempre do seu
lado, a saudade fará mais por nós dois que nosso amor e sua
desajeitada e irrefletida permanência.”
O único silêncio que perturba,
é aquele que fala.

E fala alto.

É quando ninguém bate à nossa porta,
não há emails na caixa de entrada
não há recados na secretária eletrônica
e mesmo assim, você entende a mensagem

Tristeza

tristeza é quando chove

quando está calor demais

quando o corpo dói

e os olhos pesam

tristeza é quando se dorme pouco

quando a voz sai fraca

quando as palavras cessam

e o corpo desobedece

tristeza é quando não se acha graça

quando não se sente fome

quando qualquer bobagem

nos faz chorar

tristeza é quando parece

que não vai acabar



(Martha Medeiros)

quinta-feira, outubro 11, 2007

Doces tragédias

Doces tragédias são aquelas que sofremos nos livros. São nossos choros de cinema, no conforto real da poltrona e pipoca. Quando a luz se acende, e a vida volta, vemos que tudo passa: o filme, o susto, a dor. Coisa boa é sofrer feliz.

Doces tragédias são os medos de criança. Bicho papão, sombra no teto, bruxa de fita K7. Medos cruéis que nos legam o mal da formação — virarmos adultos; essa gente besta que abre o guarda-roupa sem susto. E que ri se alguém tem medo do escuro. Não é do escuro; é das coisas terríveis que pinta neste pano preto a nossa imaginação. Por isso é que quando crescemos perdemos o medo do escuro: vai-se, na verdade, a imaginação.

Doces tragédias são as das canções. Do amor perdido, amor traído, das paisagens inúteis e dos boleros. Já conheço os passos dessa estrada, sei que vai minha tristeza e diz pra ela que vou voltar. Um tom menor é triste mas é bom: sofre sem sofrer. Canções são lágrimas de festim.

Doces tragédias eram as separações de Vinícius de Moraes. Primeiro porque eram as dele, e não as nossas. Segundo porque viravam poesia. Vinícius viveu num tempo em que coisas que não servem para nada, como a poesia, serviam para alguma coisa.

Percebi isso quando reli, recentemente, o Grande Sertão: Veredas. Todo mundo conhece a história. O sertanejo Riobaldo se apaixona por outro homem, Diadorim. Passa o livro inteiro encafifado pois “gostava de Diadorim de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”. No fim do livro, Diadorim morre. Só então Riobaldo descobre que Diadorim não era homem, era uma mulher, moça perfeita. “A Deus dada, pobrezinha”. Poucas páginas depois, surge o registro de batismo dela: “Em um 11 de setembro da era de 1800 e tanto...” Isso mesmo, um 11 de setembro.

Houve uma época de doces tragédias, quando o jagunço de tinta e papel descobria verdades de mentira. Esse tempo morreu. Diadorim morreu. Vinícius morreu. Tom Jobim também.

Mas eu ainda tenho meu medo do escuro. Envergonhado, mas tenho. E, quando acendo o abajur para dormir mais tranqüilo, a beleza daquele tempo volta a existir. Ele continua. Como diz Guimarães Rosa: “a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente”.

Publicado no Guia em O Estado de S. Paulo

André Laurentino

Cicatriz de Penélope

o dia se arrasta como um pêndulo transfigurado
luz imóvel de outono no quarto em desordem
sempre busco pela casa algo que não sei o que é
mas sei que sobra, dele

velha melodia o ronco barulhento do seu carro
amor
ficar aqui até que o vento refresque minha alma de tantas curvas
até que chova e cheire a terra e passem barcos e nuvens

o homem que me sorriu no elevador voltou
em outras cores
não era assim que eu queria que você me olhasse?

conversa de mulheres, bordar
e desbordar
ainda há pouco retoquei cena por cena
o projeto do romance. assim não vale?
alisar as plumas antes? máscara de artista,
me recuso

sinto desejo e sono. estremeço ao menor zumbido.
mulher,
pássaro penteando as asas, sempre.

não sei se quando ele me beija pensa em palmeiras suspensas" tristeza que carrego, sobra no tempo, ameaça. virgular é feminino

você pensa que me entende? eu não quis dizer ao mesmo tempo:
alma e corpo
faça isso, pegue a minha mão, não faz tanto frio.
tento dizer que colecionar pedras em segredo não fica bem,
baby

minhas lágrimas patéticas? dolores duran escreveu "por causa de você" com o lápis de sobrancelha. uso esse vestido vaporoso
com o mesmo lirismo.
caminho como se assobiasse e não reparo
no homem que me deseja parado no sinal.

Ledusha

Caro André

Não sei por onde você anda. Mas, como de vez em quando você está nesta página — e só de vez em quando, em raros raios de inspiração — achei melhor deixar meu recado aqui.

Peço desculpas por não poder aparecer sempre que deveria, mas é que a vida anda corrida (a minha não, a sua; que além do mais deu para viver entre parênteses) e quase nunca consigo um encontro. Se você está me lendo, é sorte.

Eu sou o você com tempo, ou seja, o que já não é. Aquele que vive mais que as três horas, entre a novela e a meia-noite, quando você dorme e acorda sem mim, ou me deixa em algum canto da pressa, antes de ir ao trabalho. Eu sou o que observa na janela, e dita assunto para suas mãos apressadas preencherem linhas, na vã esperança de, em relendo-as depois, vivê-las ao menos uma vez. Eu vivo por você, enquanto você corre sozinho e só. E quando alguém pergunta “como vai?” sou eu quem conhece a resposta. Mas por educação, André, acho melhor não contar.

Você não sabe dos meus dias, do que ando lendo, com quem converso as conversas que você adia. Sou eu quem vai aos encontros nas mesas vazias, nos almoços só prometidos, nas festas canceladas. O bate-papo no café, a risada de corredor, um site de futebol. Ou a moça que tropeça na rua, o pardal no fio, um formato de poça d’água, o jeito de alguém folhear a revista.

Minha vida, André, é discreta. Ela se esconde na concha e se embrenha por entre as frestas dos gritos, serpenteando ao redor de buzinas, escapando aos compromissos e planos. É imensa como um fio de cabelo. Por onde anda a sua? Em que restaurante, em que bolso de calça, dentro de qual guarda-chuva você a esqueceu?

Veja, o espaço está acabando; não temos muito tempo. Rápido. Marque um cinema, ou melhor, não marque. Mas vá. Tome um chopp, convide para a mesa um amigo distante que provoque silêncios, desertos de intimidade, e faça destes espaços os saltos para a volta.

Anote nas margens de livros, veja fotos antigas, leve um sapato ao conserto, compre frutas, perca tempo. Ao menos uma vez por dia, faça uma coisa que não sirva para alguma coisa. Eu moro nessas inutilidades, e lá estarei, esperando.

Desculpe a maneira um tanto piegas, detesto quebrar suas lantejoulas de leonino. Mas quando percebi seu olhar de papel, um ollhar farto e branco, resolvi intervir. E também porque, justo esta semana, você passou dos limites. Você conseguiu esquecer, André, o próprio aniversário.

Um forte abraço.

Publicado no Guia em O Estado de S. Paulo
André Laurentino

quarta-feira, outubro 10, 2007

Receita para mal de amor

Minha querida amiga: Sim, é para você mesma que estou escrevendo
- você que aquela noite disse que estava com vontade de me pedir conselhos, mas tinha vergonha e achava que não valia a pena, e acabou me formulando uma pergunta ingênua:
.
-Como é que a gente faz para esquecer uma pessoa?
.
E logo depois me pediu que não pensasse nisso e esquecesse a pergunta, dizendo que achava que tinha bebido um ou dois uísques a mais..
Sei como você está sofrendo, e prefiro lhe responder assim pelas páginas de uma revista - fazendo de conta que me dirijo a um destinatário suposto.
Destinatário, destinatária...Bonita palavra: não devia querer dizer apenas aquele ou aquela a quem se destina uma carta, devia querer dizer também a pessoa que é dona do destino da gente. Joana é minha destinatária. Meu destino está em suas mãos; a ela se destinam meus pensamentos, minha lembranças, o que sinto e o que sou: todo este complexo mais ou menos melancólico e todavia tão veemente de coisas que eu nasci e me tornei.
Se me derem para encher uma fórmula impressa ou uma ficha de hotel eu poderei escrever assim: Procedência - São Paulo; Destino - Joana. Pois é somente para ela que eu marcho. No táxi, no bonde, no avião, na rua, não interessa a direção em que me movo, meu destino é Joana. Que importa saber que jamais chegarei ao meu destino?
Isso eu gostaria de lhe dizer, minha amiga, com a autoridade triste do mais vivido e mais sofrido: amar é um ato de paciência e de humildade; é uma longa devoção. Você me responderá que não é nada disso; que você já chegou ao seu destinatário e foi devolvida como se fosse uma carta com o endereço errado. Que teve alguns dias, algumas horas de felicidade, e por isso agora sofre de maneira insuportável. Então lhe aconselho a comprar um canivete bem amolado e afinar dezoito pedacinhos de pau até ficarem bem pontudos, bem lisos, perfeitamente torneados - e depois deixá-los a um canto. Apanhar uma folha de papel tamanho ofício e enchê-la com o nome de seu amado, escrevendo uma letra bem bonita, de preferência com tinta azul. Em seguida faça com essa folha um aviãozinho, e o jogue pela janela. Observe o vôo e a aterrissagem. Depois desça, vá lá fora, apanhe o avião de papel, desdobre a folha novamente (pode passá-la a ferro, para o serviço ficar mais perfeito e não haver mais nenhum indício da construção aeronáutica) e volte a dobrá-la, desta vez ao meio. Dobre outras vezes, até obter o menor retângulo possível. Então, com o canivete, vá cortando as partes dobradas até transformar toda a folha em minúsculos papeizinhos, tão pequenos que o nome de seu amado não deve caber inteiro em nenhum deles. Aí, apanhe todos aqueles pauzinhos que tinha deixado a um canto e, com os pedacinhos de papel, faça uma fogueira com o máximo cuidado até que restem somente cinzas. A seguir poderá repetir a operação...
.
-Adianta alguma coisa?
.
Por favor, querida amiga, não me faça esta pergunta. Nada adianta coisa alguma, a não ser o tempo; e fazer fogueirinhas é um meio tão bom quanto qualquer outro de passar o tempo.

Rubem Braga

Amizade sem trato

Dei para me emocionar cada vez que falo do amigos. Deve ser a idade, dizem que a gente fica mais sentimental. Mas é fato: quando penso no que tenho de mais valioso, os amigos aparecem em pé de igualdade com o resto da família. E quando ouço pessoas dizendo que amigo, mas amigo meeeeeesmo, a gente só tem dois ou três, empino o peito e fico até meio besta de tanto orgulho: eu tenho muito mais do que dois ou três. São uma cambada. Não é privilégio meu, qualquer pessoa poderia ter tantos assim, mas quem se dedica?

Fulano é meu amigo. Sicrana é minha amiga. É nada. São conhecidos. Gente que cumprimentamos na rua, falamos rapidamente numa festa, de repente sabemos até de uma fofoca pesada sobre eles, mas amigos? Nem perto. Alguns até chegaram a ser, mas não são mais por absoluta falta de cuidado de ambas as partes.

Amizade não é só empatia, é cultivo. Exige tempo, disposição. E o mais importante: o carinho não precisa - nem deve - vir acompanhado de um motivo.

As pessoas se falam basicamente nos aniversários, no Natal ou para pedir um favor - tem que haver alguma razão prática ou festiva para fazer contato. Pois para saber a diferença entre um amigo ocasional e um amigo de verdade, basta tirar a razão de cena. Você não precisa de uma razão, basta sentir a falta da pessoa. E, estando juntos, tratarem-se bem.

Difícil explicar o que é tratar bem. Se são amigos mesmo, não precisa nem falar, podem caminhar lado a lado em silêncio. Não é preciso troca de elogios constantes, podem até pegar no pé um do outro, delicadamente. Não é preciso manifestações constantes de carinho, podem dizer verdades duras, às vezes elas são necessárias. Mas há sempre algo sublime no ar entre dois amigos de verdade. Talvez respeito seja a palavra. Afeto, certamente. Cumplicidade? Mais do que cumplicidade. Sintonia?

Acho que é amor.

Oh, céus! Santa pieguice, Batman! Amor? Esta lenga lenga de novo?

Sério, só mesmo amando um amigo para permitir que ele se jogue no seu sofá e chore todas as dores dele sem que você se incomode nem um pingo com isso. Só mesmo amando para você confiar a ele o seu próprio inferno. E para não invejarem as vitórias um do outro. Por amor, você empresta as suas coisas, dá seu tempo, é honesto nas suas respostas, cuida para não ofender, abraça causas que não são suas, entra numas roubadas, compreende alguns sumiços, só que liga quando o sumiço é exagerado. Tudo isso é amizade com trato. Se amigos assim entraram na sua vida, não deixe que sumam.

Porém a maioria das pessoas não só deixa como contribui para que os amigos evaporem. Ignora os mecanismos de manutenção. Acha que a amizade é algo que vem pronto e que é da sua natureza ser constante, sem precisar que a gente dê uma mãozinha. E aí um dia abrimos a mãozinha e não conseguimos contar nos dedos nem dois amigos pra valer. E ainda argumentamos que a solidão é um sintoma destes dias de hoje, tão emergenciais, tão individualistas. Nada disso. A solidão é apenas um sintoma do nosso descaso.
Eu fico sabendo de notícias de amigos que voltam para suas casas. São notícias que me soam como pedras caindo no mar. Sei de amigos que sequer saem de suas casas. E ficam lá com suas mulheres, seus gatos e seus copos de whisky. Alguns pensam que eu, boêmio irredutível, posso sentir desprezo por amigos assim. Mas se tivesse que sentir algo, sentiria mesmo é inveja. Não que eu sinta, quero deixar claro. Mas se tivesse que sentir, seria algo perto desse sentimento mesquinho e bisonho. Ou vocês acham que eu não poderia invejar os seus sofás de quatro lugares? Lembro que um amigo ia casar e ele me perguntou o que devia comprar para sua nova casa. Eu recomendei cruelmente que comprasse um bom sofá. Era onde ele iria passar grande parte de sua vida e a maior parte de suas noites. Fui ainda mais cruel quando disse que ele devia comprar uma boa tv e ter um bom cachorro. Afinal esse seria o individuo que iria tratá-lo com carinho quando chegasse em casa. Crueldade boba de um sujeito inepto como eu, nada mais do que isso. O tipo de comentário cruel que costumo fazer e que pode gerar suspeitas de misoginia. Mas não é nada disso. É só crueldade gratuita de um sujeito inepto. Então sendo assim, porque não iria invejar o seu armário do banheiro com o casal de escovas de dente? Porque não iria invejar o meu amigo que vê o sol nascer resplandecente da janela de seu apartamento? Mal ando vendo o sol nascer. Quando percebo, ele já invadiu a porta do bar e só então eu noto que não estou com os meus óculos escuros. Enquanto alguns amigos meus tomam um farto café da manhã em casa e ganham um gentil beijo de suas mulheres, bebo um pingado no boteco da esquina e sou abordado por uma jovem prostituta.
“Eu te vi lá no bar.”
“Eu também te vi.”
“Então você tava me observando.”
“Não. Eu só te vi.”
Ela já tirando o seu celular e se preparando para anotar.
“Me dá o seu número?”
“Não. Porque eu te daria o meu número?”
“É que eu gosto de homens assim como você.”
“Que tipo de homem eu sou?”
“Mais velho. Gosto de homens mais velhos que fazem bem.”
“Eu não faço nada bem.”
E saio andando. E ela entra em um carro. Ela pareceu não entender. E tem o sol. E eu estou sem meus óculos escuros. E o pequeno quarteirão parece uma gigantesca quadra de Brasília. E eu mexo nos bolsos procurando a minha chave. O porteiro nunca está lá nesse horário. Parece que ele sempre tem algo pra fazer lá nos fundos do prédio. Sequer estranho a sarcástica coincidência. Apenas procuro as minhas chaves no bolso da calça entre os extratos bancários, os cartões usados da Tim, os folhetos de divulgação de peças de teatro e os comprovantes de depósito. Entro na minha kitchenete e a solidão me recebe com um sorriso benevolente. Passo os olhos sobre alguns quadrinhos do Azzarello, coloco “Californication” no aparelho de DVD e vejo o escritor querendo acertar os ponteiros com Deus. Adormeço deitado na rede totalmente encolhido embaixo do cobertor. Não tenho sequer direito de escolher os sonhos que passam na emissora do Sr. Orfeu Marinho. Um cara que acha que o clitóris fica logo abaixo da vagina. Um sujeito com incompetência para gostar de outros seres humanos. Um monstro que devora florestas tropicais e uma praia com um desfile de toalhas coloridas. Acordo sobressaltado e penso nos amigos que voltam para suas casas, suas mulheres, seus cachorros e seus copos de whisky. Quase posso vê-los em sua perene felicidade. Se fosse dado a sentimentos de inveja, sentiria algo parecido. Mas sou um cara sem talento para esse tipo de sentimento. Então penso que se ainda soubesse rezar, pediria pra que eles conseguissem. Eu queria sinceramente que eles conseguissem. Penso que alguém deve conseguir. Eles tem o seu mundo. Eu tenho apenas o meu lugar no mundo. E tem o sol entrando pela fresta da cortina. E tem a garrafa de água a quem eu recorro durante o sono a cada 30 minutos. E tem essa sensação estranha de combate perdido. De proximidade da lona. Ainda me sobra compaixão. Devo dormir com essa idéia feliz.

domingo, setembro 30, 2007

OUTSIDER: QUEM NÃO SE ENQUADRA

A figura do outsider. Do cara que não se enquadra. Do sujeito que não faz questão de pertencer a nenhuma turma. O cara que no colégio sentava na última carteira, não falava com ninguém e ia embora sozinho. Havia algo de muito maneiro em figuras desse naipe.

Numa sociedade onde qualquer babaca quer virar celebridade, a figura do "ninguém" sempre me pareceu o melhor modelo de vida. E aqui não vai nenhuma pretensão estilosa do tipo "é legal ser diferente". Porra nenhuma. O que eu penso é que simplesmente "ninguém precisa ser igual".

Cada pessoa devia andar por aí rezando pela própria Bíblia, ou seja, fazendo suas próprias leis e fazendo uso de seu livre arbítrio. Mas não é o que tem acontecido.

Assisto sem nenhum entusiasmo e com bastante perplexidade aqueles filmes americanos de turmas de universidade com aquelas indefectíveis fraternidades onde o cara passa por uma coleção inimaginável de humilhações apenas com o inacreditável intuito de ser aceito em uma fraternidade de babacas. Não é muito diferente das merdas dos trotes universitários brasileiros. Babaca não respeita geografia.

Fico imaginando o que leva uma pessoa a essa necessidade doentia de ser aceito. E com o tempo me parece que em busca de aceitação as pessoas têm se padronizado de maneira assustadora e alarmante.

Hoje em dia a rapaziada usa piercing, tatuagem (não que eu tenha exatamente nada contra o uso de piercings ou tatuagens, mas é que parece que grande parte da molecada começa a usar apenas numas de copiar outra pessoa e aí é esquisito), o mesmo corte de cabelo, gosta das mesmas músicas e das mesmas roupas e emprega as mesmas expressões ("Galera", "é dez", "é show", "baladinha" e outras que eu não consigo sequer repetir aqui sem ter o meu estômago revirado) e aí ele se sente parte de alguma coisa, é compreendido e aceito e não vira motivo de zombaria entre os demais, justamente por não ser diferente.

Então o que acontece é muito simples. Se o sujeito tá num grupo onde o lance é odiar alguém, seja quem for, pode ser negro, viado, gordo, mulher ou o Mico-Leão Dourado, então o cara vai passar a odiar, ele nem sabe o motivo, é que a turma odeia e ponto. E se a turma pinta o cabelo de azul, então o panaca pinta também. E se a turma acha que é legal praticar artes marciais pra sair dando porrada em desavisados noturnos, então o cara automaticamente se inscreve numa academia e sai de lá o mó Steven Seagal.

E acha legal sair de carro com uma piranha oxigenada (esses caras sempre andam com piranhas descerebradas que são apreciadoras de bravatas intimidatórias) e provocar o primeiro sujeito pacífico que eles cruzarem pela frente. E vai ser providencial se eles pegarem pela frente um carinha com um livro do Kafka no ponto de ônibus. Esses caras nutrem um profundo ódio por qualquer sujeito que consiga articular mais que duas frases inteligíveis. E as suas piranhas são as primeiras a aplaudir o massacre.

Não tô aqui querendo de maneira nenhuma desmerecer o trabalho de alguns professores de artes marciais que sei o quanto são sérios e dignos. Mas é que sem a devida orientação eles estão criando um exército de babacas extremamente perigosos.

E é claro que a mídia e a publicidade incentivam irresponsávelmente esse estilo de vida. Elas querem todo mundo comprando e consumindo as mesmas coisas, coisas essas que eles fabricam em larga escala para atender a demanda desenfreada.

Numa novelinha como Malhação, só pra citar um exemplo bastante óbvio, a impressão que fica é que o roteirista escreveu um monólogo e depois distribuiu as falas entre vários personagens. Não há diferenciação de personalidade. Todos falam as mesmas coisas, do mesmo jeito e usando as mesmas expressões. Em resumo: fique igual e permaneça legal.

Há um processo de idiotização total e irrestrita avançando a passos largos. E essa busca pela padronização e no conseqüente status mediano (estou sendo generoso com esse "mediano") que as pessoas têm alcançado ganhou por esses dias duas novas forças de responsa.

A MTV “onde é que estão os clipes, porra?” estreou dois programas que são verdadeiras aberrações. O primeiro deles é o tal Missão MTV onde a Modelo Fernanda Tavares totalmente destituída de qualquer coisa que possa ser chamada de carisma, apesar de bonitinha (é o mínimo que se pode esperar de uma modelo) é chamada para padronizar qualquer sujeito que não esteja seguindo as regrinhas do que eles chamam de "bom gosto". Então se uma garota não fizer o gênero patricinha afetada, então ela automaticamente está out e a missão da Fernanda é introduzir a "rebelde" ao mundo dos iguais.

E dá-lhe o que eles chamam de "banho de loja". Se o cara usa roupas largas e o cabelo sem uma preocupação fashion e ainda se diz roqueiro, então eles transformam o coitado num metrosexual glitter afetado e por aí vai. Parece que a mulher vai dar um jeito no quarto de um sujeito. Ela diz que tá tudo errado no quarto do cara. Como assim? É o quarto dele, porra. Enfim, é proibido ter estilo. Quem não se enquadra, sai de cena. Em resumo, um programa vergonhoso.

Mas o pior ainda é o outro: O inacreditável e assustador Famous Face. Sacaram qual é a desse? Uma maluca encasqueta que quer ficar parecida com a Jeniffer Lopez ou com a Britney Spears e tal estultice é incentivada. Em resumo, a transformação é filmada e testemunhamos a verdadeira frankesteinização sofrida pela pobre iludida. Ela se submete à operação plástica, lipoaspiração e o caralho. Chega a ser nojento. Eu não entendo qual é a de um programa como esse. Será que a indústria da cirurgia plástica tá precisando de uma forcinha? Eu duvido. Nunca vi se falar tanto em botox, silicone, lipo e outras merdas. Todo mundo tentando evitar o inevitável. Todo mundo querendo retardar o tempo incontrastável. Vivemos cada vez mais em uma gigantesca e apavorante Ilha do Dr. Mureau. Foda-se Dorian Gray. Eu sou bem mais as rugas de Hemingway.

Nota do Editor
Mário Bortolotto é dramaturgo. Este texto, reproduzido aqui com sua autorização, foi originalmente publicado em seu blog Atire no Dramaturgo.

Antes da noite chegar

Há um tempo atrás escrevi aqui que tinha saudades do moleque fodão que eu era. E foi sincero. Mas de uns tempos pra cá tô sentindo orgulho do homem que sou. Acho que foi depois que li o belo auto-retrato do Pinduca (troço bonito pra caralho – leiam lá no blog dele, no post do dia 02 de Julho). Posso até ser um babaca pra muita gente, mas eu sinto orgulho de mim e é isso que basta. Voltei a andar de cabeça erguida e escolher a música que vai na minha trilha sonora. E sofro as conseqüências por isso. E quer saber? Acho que o homem tem direito a tristeza, mas sinto um profundo desprezo por homem desesperado e bunda mole. Acho que as pessoas têm direito a farejar a sorte, mas ninguém deve implorar por ela. Sou um cara desgraçadamente tenaz. Sempre fui. Mas teve vezes que vacilei. Então agora reavalio depois de oito doses de whisky e percebo apesar do vento frio e da sensação total de abandono o náufrago resgatado que sou. Moro sozinho numa kitchenete e durmo numa rede. Na maior parte do tempo, sou um cara triste pra caralho, mas não vou ficar me lamentando e nem tomar antidepressivos por isso. Escrevo como um psicopata e bebo como um camelo que fugiu do inferno, mas é assim que me posiciono diante da vida. Não espero muito mais dela, mas ando por aí ouvindo “Like a Rolling Stone” na versão Hendrix. Tenho uma filha linda que eu adoro (embora não demonstre muito) e que vejo muito pouco, mas ela é minha filha. Sei que não sou um pai exemplar, mas acho que ela gosta de mim, mesmo assim. Ela já sacou até onde posso ir. Queria que outras pessoas que amo também percebessem isso, mas já desisti de querer demais. Tenho alguns amigos bacanas e alguns inimigos fiéis, e o que o mais um homem pode querer? Contemplo demoradamente as lombadas dos livros, escolho o inimigo e até hesito na hora de sacar. Não quero verdadeiramente machucar ninguém. Tem momentos que eu quero mais é que se foda, mas eu continuo aqui num canto seguro do balcão. Ando fugindo de encrenca e deixo os malas vibrarem ao matarem as duas primeiras bolas de saída. O jogo não acabou e eles não fazem idéia do que vai acontecer com eles. Continuo não evoluindo espiritualmente, simplesmente porque acho isso uma puta babaquice. Os demônios estão arranhando a minha porta e eu resmungo o meu arremedo de “não me enche o saco”. Ninguém pode fazer mais nada por mim, mas quem disse que eu tô pedindo ajuda?
E só pra terminar, por uma simples questão de gosto pessoal
Prefiro Bukowski a Grotowski
E Xico Sá a Chico Sciense.
Não sou o cara mais simpático do mundo, mas desejo a todos uma boa noite. Ela tá chegando.


Escrito por Mário Bortolotto

sábado, setembro 29, 2007

Meu coração está em paz

Meu coração está em paz.

O que ficou foi o medo.

O cansaço.

A dor.

A saudade.

Mas isso orbita em volta dele.

Não dentro.

Lá, no meio, o nada.

Sangue, artérias e os movimentos de sístole, diástole que não cessam.

Nem se eu pedir muito.

Com jeitinho.

Vomito em carrosséis, desculpe.

Não segurei tanta coisa.

Todo mundo avisou.

Mas unanimidades jamais me chamaram atenção.

E nunca gostei de marionetes.

De novo?

Fiz.Ppronto. Foda-se.

É que São Jorge é ocupadíssimo meu amor.

E eu estava muito disposta a matar cinco ou nove dragões contigo.

Dez dias longos sem escrever. Com noites de insônia no meio.

Vou ficar bem, estou bem.

Sobrevivo em qualquer situação, sabes.

Sei colocar um pé depois do outro.

E respirar.

Só não aprendi a tirar o sutiã com apenas uma mão.

Mas eu chego lá.

Ainda não concordo.

Mas respeito.

Embora seja triste.

Mamãe diz: isso passa. Em gurias bonitas. Passa mais rápido.

Papai quase concorda: passa. Mas vai te devastar.

Quando o moço chegou com flores e chocolates, sorri.

“Se tu sorrir três vezes, o que tu mais quer acontece.” Ele falou, sério.

Sorri três, seis, nove.

Aconteceu.

Com pequenos erros de atores e cenário.

Talvez eu devesse ter parado no terceiro e esperado.

Meus 25 anos têm pressa de felicidade.

Talvez por isso, esperar o tempo certo é uma tortura lenta.

Tempo, aliás, é Saturno, soturno que rege o signo de capricórnio.

Acho graça.

Nada é coincidência.

Quanta descoberta para pouca vida, não?

Como te disse, não direi mais teu nome.

Vou acender incensos e velas de sete dias.

Que Oxum, que é uma deusa dourada e de hálito doce, nos proteja.

Que Yemanjá nos tire de dentro da água.

Vivos.

Falando nisso, se doer - e vai doer- , lembra da oração de criança.

“Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador. Se ele a ti me confiou, me guarda, me rege, me protege. Agora e sempre, amém.”

No mais, boa sorte pra nós dois.

Que os gatos estão no sol.

*Agradeço à mais amiga pelo acompanhamento e digitação do fim.

Cristiane Lisboa

Algumas pessoas

Algumas pessoas acabam se encontrando. E é como se conhecessem desde sempre. Algumas pessoas desistiram de botar suas fichas na máquina e choram assistindo People and Arts de madrugada. E cultivam milhões de novidades pra dizer umas às outras. Algumas pessoas "jogaram fora o guardanapo pra comer com a mão". Fazer o quê. Algumas pessoas decidiram se sofisticar. E produzem coisas importantes. E detestam o trabalho solo do Frejat. Algumas pessoas espremem o cérebro e se divertem. E bolam apelidos engraçados pras pessoas. E nutrem idéias mirabolantes. E seus sonhos grisalhos. E seus blogs sangrando. Algumas pessoas são capazes de elogios desconcertantes. E nunca esquecem o final da piada. E citam cenas inteiras de seus filmes preferidos. E racham garrafas de conhaque só pra assistir ao show dos Bêbados Habilidosos. Que resolveram tocar suas ilíadas vagabundas quase clandestinamente. Assim. Apenas pra algumas pessoas. Que riem de si mesmas como se rezassem. Que insistem em recolher as peças só pra espalhá-las de novo. Algumas pessoas que construíram isso como operárias do próprio privilégio. Que custa caro. As coisas que importam. E as que não se explicam. Algumas pessoas se debatem pra não descuidar da defesa mas desde há muito descobriram que só sabem jogar no ataque. E permanecem saudavelmente inquietas mesmo se o time estiver ganhando. Algumas pessoas se emocionam. E deixam o melhor do seu abandono em cada abraço que fica. Algumas pessoas realmente direcionaram suas vidas. E subiram nos ombros dos seus ídolos e dos seus medos pra poder enxergar depois do muro. Só pra ver aonde a bola caiu. E continuar brincando. Desfrutar desse indescritível prazer que é chutá-la mais longe.

Marcelo Montenegro

Perca peso, fique rico, seja feliz

Eu quero a sorte de um amor tranqüilo, com o sabor que a moça puder oferecer, um tanto de vertigem entre a pálpebra e a morenice dos olhos, desses que dá vontade de mergulhar e nunca mais voltar à superfície para respirar, afinal, o estado de torpor a que o corpo acostuma-se aos poucos quando se percebe afogado é confortável.

E o caos do mundo tomando tudo de assalto, mesmo com as janelas fechadas, o barulho de tudo que explode lá fora. Meia hora do mais genuíno desespero de simplesmente não saber o que fazer da vida e de tanta cobrança, não tendo para quem discar, o timbre monótono da chamada em espera e que nunca será retornada.

É isto: querer a realidade com seus dedos de unhas grandes e sujas, que volta e meia infecciona as nossas feridas guardadas sob os esparadrapos ou adormecidas pela quantidade sempre avante de paraísos químicos, alterados e à frente do que possamos chamar de tédio, afinal é esse o alvo que precisa ser exterminado, mas enfim, ele é um gato de sete mil vidas. A vida, sem tirar nem pôr. A vida, você me entende?

Talvez tenha sido isso que a moça de sorriso bonito - dentes brancos a ponto de deixar em quem os fita a vontade de arrancá-los todos e fazer um colar para exibir no peito - não tenha entendido. Querer a vida, com seus atropelos e agonias, a morte respirando quente na nossa nuca todos os dia. Eu quero isso.

O diabetes em tempo de estourar, como o mercúrio do termômetro que mede o calor de asfalto ao meio dia no centro da cidade. A grana curta de uma ou duas faturas pagas e das outras três em atraso e os juros devorando até o tecido fino dos bolsos. Tristeza no seu estado primitivo, embrutecendo os ânimos, o desamor consumindo tudo e alimentando a barba que não pára de crescer. Nada disso ela entendeu. O seu argumento era em planilhas, de peso e dinheiro, escalas inversamente proporcionais. Emagreceu e ficou rica. Desculpa, não quero.

As palavras bem articuladas e devidamente montadas como um jogo de xadrez onde sua mente de tanta informação a ser absorvida em tão pouco tempo fatalmente perderá por xeque-mate, só conseguiam oferecer o paraíso. Não quero, me acostumei ao calor. Não quero emagrecer, nem vou te perguntar como. Não quero uma renda extra para reforçar o orçamento. Não, desculpa, só posso te oferecer solidão com vista para o mar em troca. Interessa?

Que o mundo me livre de outro mundo de pessoas magras, felizes e ricas, do falso aconchego de mais uma “família” moldada pelo interesse comum de estourar a conta com tanta grana e compartilhar o contra-cheque miserável do último emprego, exposto como um demônio exorcizado pelas fotos de tantas viagens ao redor do mundo. Não quero, não posso, é da minha natureza. Desculpa moça, a Herbalife não me interessa.

Rodrigo Levino

sábado, junho 09, 2007

Feliz até doer

Felicidade não tem manual, mas acertando e errando a gente constrói nossa cartilha de crenças. Somos na essência sozinhos e livres Eu tinha dez anos e era um moleque que só se preocupava em jogar bola.
Enquanto meninas da minha idade colecionavam papéis de carta e brincavam de boneca, eu vivia suja, suada e cheia de hematomas pelo corpo - cortesia do tratamento igualitário de meus colegas boleiros. E nesse doce ritmo ia a vida, até o dia em que conheci meu primeiro trauma. Durante uma briga com meu irmão caçula ouvi de minha mãe: "Pare de brigar com ele. Ele não tem culpa se você não é homem".
E a realidade bateu à minha porta. Foi o dia em que eu entendi que ser diferente não era normal. E que talvez eu, de fato, não fosse quem gostaria de ser. A partir de então, todas as noites eu ia para a cama me questionando se queria ser meu irmão. Ou se queria ser homem. Só encontrei a resposta no dia 12 de dezembro de 1983, quando beijei minha melhor amiga na boca. Não, eu não queria ser homem. Queria apenas poder amar outras mulheres e demonstrar meu amor fisicamente. Mas isso parecia impossível num mundo no qual a cartilha moral nos manda casar e, na seqüência, ter, de preferência, um casal de filhos. Se além disso conseguirmos colocar dois carros na garagem e um cachorrinho na sala, bingo, tudo o que esperavam de nossa jornada terá sido devidamente conquistado. E, aos olhos do mundo, seremos felizes.
Mas minha existência, desde muito cedo, não seguiu nenhum manual já criado. Com o tempo descobri que a vida, felizmente, não é previsível como um filme da Disney. Crescemos, mas levamos com a gente todos os traumas da infância. Viramos adultos, por mais bem resolvidos, cheios de dores e feridas. Passamos a vida em busca de repetir as sensações da adolescência, quando as amizades eram descompromissadas, as baladas não tinham hora para acabar, e os amores, arrebatadores. Quando os cortes mais profundos podiam ser sentidos na carne, sem pressa de cicatrizar. Quando dormir depois da Sessão da Tarde era aceitável. Solidão de sábado à tarde
Olho em volta e vejo meus amigos aos 30 e poucos. As paixões verdadeiras e arrebatadoras são raras, e, quando vêm, vêm cheias de complexos e desencontros. Solidão de sábado à tarde. Tentamos lamber as feridas para que elas não sangrem aos olhos alheios. Esperam muito de todas nós: é preciso ser forte, elegante, bonita, bem-sucedida, casada, ter filhos, cuidar da casa. É preciso que sejamos várias em uma só, e falhar em alguma dessas tarefas pode comprometer todas as outras. O diabo é que já provamos que somos capazes da multiplicidade, mas estamos chegando à conclusão de que não queremos passar a vida sapateando entre o cabeleireiro, a escola do filho, a reunião de trabalho e a satisfação sexual do companheiro. Queremos apenas ter o direito de sangrar no nosso canto, sem audiência, sem platéia, quando a dor bater forte. Queremos nos apaixonar e poder tirar férias para curtir a paixão, ou a dor da separação. Queremos apresentar um projeto de lei que permita aos apaixonados e aos recém-abandonados não trabalhar por seis meses, ou mais. Queremos entender que a felicidade não é o destino, mas a viagem. Que ela se encontra na mesa de um bar qualquer, num fim de tarde qualquer, jogando conversa fora com amigos sinceros. Que mora no abraço apertado de um sobrinho, em uma rede que balança compassadamente na varanda de um apartamento no coração da maior cidade do Brasil ao cair da noite, no beijo da pessoa amada, num fim de semana na praia com amigos antigos. Que a felicidade é saber, finalmente, quem somos e o que queremos fazer aqui. E que buscar nossas verdades individuais, por mais distantes que elas estejam, é o grande barato dessa jornada. Que existe um tipo de felicidade nas brigas, cheias de mágoa e de dor, com quem amamos. Que é possível crescer no sofrimento. Que por vezes a vida vai ficar tão cinza e sem graça que a vontade de desistir vai nos sufocar. E que, nesses dias, sonhar não será possível. Mas que todos passam por momentos de desespero. E que a felicidade será resgatada em novos sonhos. Por que não nos deixam cair?
Olho em volta e vejo meus amigos crescidos, mas andando de mãos dadas com as crianças que foram. Gostaríamos de ter aquele adulto de segurança na nossa cola, aquele que vai, todo curvado e atento. Uma simples ameaça de tropeço, e a mão está pronta para o resgate. A partir daí, para sempre precisaremos saber que seremos amparados a cada tropeço. E essa infernal necessidade de segurança aniquila nossa liberdade. Por que não nos deixam cair? Somos, antes de mais nada, animais livres, e a liberdade é, para cada um de nós, mais visceral do que a segurança. Ou deveria ser. Porque a vida é feita de levantar, lamber a ferida e seguir. Não estaria a felicidade na coragem de trocar segurança por liberdade? Na ousadia de abrir mão de convenções e detritos morais pelo que queremos ser e viver de verdade? Em um simples beijo, roubado em um domingo de manhã, da mulher que se ama na mesa da padaria? Em receber, no meio de uma reunião chata, uma mensagem pelo celular com apenas três palavras que vão nos fazer sorrir?
Felicidade é dançar sozinha na sala sem ninguém por testemunha, sem motivo aparente. É pedir demissão quando o tesão acabar, mesmo sem ter outro emprego. É fracassar e não ter vergonha de admitir, simplesmente porque não existe quem nunca tenha fracassado. É saber que somos fracos e pequenos, e, ao mesmo tempo, fortes e gigantes. Que somos biologicamente idênticos, e por isso não existe entre nós os que são melhores e os que são piores. Mas também saber que somos absolutamente diferentes uns dos outros. E que a beleza está nesses pequenos espaços que nos distinguem, e não no que temos em comum.
Felicidade é se deixar levar pelo coração e fazer com que a cabeça seja subordinada a ele, e não o contrário. É não se prender à tradição, é questionar a moral do mundo, um mundo cujos valores são tão tortos que é capaz de limitar e punir o amor, mas não a guerra.
Felicidade é entender que andamos todos pela rua, numa segunda-feira qualquer, machucados, feridos, torturados. Que somos bichos cheios de traumas. Que cada um de nós possui um segredo mais dolorido que o outro. Mas que não existe vida sem dor. Pelo menos não o tipo que valha a pena ser vivida. Felicidade é olhar no espelho e ver nosso rosto envelhecer. Com todas as marcas que nele cabem. E entender que envelhecer é a única opção agradável. Porque a outra, convenhamos, me parece bem pior. E, já que a viagem é curta, é preciso arriscar. Sempre. E saber que não existe um manual que nos ensine a ser feliz. Mas que, sofrendo, amando e arriscando, estamos construindo nossa cartilha de crenças. Uma cartilha que é individual. E que, mais cedo do que tarde, ela nos libertará. Porque somos, na essência, sozinhos e livres.

A carioca Milly Lacombe, 39 anos, é jornalista, canceriana, tem ascendente em touro e não faz idéia de onde estava a Lua quando nasceu. Seu e-mail é milly@trip.com.br
Depois de um bom tempo dizendo que eu era amulher da vida dele, um belo dia eu recebo um e-mail dizendo: "olha, nãodá mais".
Ta certo que a gente tava quase se matando e que o namoro já tinha acabado mesmo, mas não se termina nenhuma história de amor(e eu ainda o amava muito) com um e-mail, não é mesmo?
Liguei pra tentar conversar e terminar tudo decentemente e ele respondeu:"mas agora eu to comendo um lanche com amigos".
Enfim, fiquei pra morrer algumas semanas até que decidi que precisava ser uma mulher melhor para ele.Quem sabe eu ficando mais bonita, mais equilibrada ou mais inteligente, ele não volta pra mim?Foi assim que me matriculei simultaneamente numa academia de ginástica, num centro budista e em um curso de cinema.
Nos meses que se seguiram eu me tornei dos seres mais malhados, calmos, espiritualizados e cinéfilos do planeta.
E sabe o que aconteceu? Nada, absolutamente nada, ele continuou não lembrando que eu existia.
Aí achei que isso não podia ficar assim, de jeito nenhum, eu precisava ser ainda melhor pra ele, sim, ele tinha que voltar pra mim de qualquer jeito.
Decidi ser uma mulher mais feliz, afinal, quando você é feliz com você mesma, você não põe toda a sua felicidade no outro e tudo fica mais leve.Pra isso, larguei de vez a propaganda, que eu não suportava mais, e resolvi me empenhar na carreira de escritora, participei de vários livros, terminei meu próprio livro, ganhei novas colunas em revistas, quintupliquei o número de leitores do meu site e nada aconteceu.
Mas eu sou taurina com ascendente em Áries, lua em gêmeos e filha única!
Eu não desisto fácil assim de um amor, e então resolvi que eu tinha que ser uma superultra mulher para ele, só assim elevoltaria pra mim.Foi então que passei 35 dias na Europa, exclusivamente em minha companhia, conhecendo lugares geniais, controlando meu pânico em estar sozinha e longe de casa, me tornando mais culta e vivida.
Voltei de viagem e tchân, tchân, tchân, tchân: nem sinal de vida.
Comecei um documentário com um grande amigo, aprendi a fazer strip, cortei meu cabelo 145 vezes, aumentei a terapia, li mais uns 30livros, ajudei os pobres, rezei pra Santo Antonio umas 1.000 vezes, torrei no sol, fiz milhares de cursos de roteiro, astrologia e história,aprendi a nadar, me apaixonei por praia, comprei todas as roupas mais lindas de Paris.
Como última cartada para ser a melhor mulher do planeta, eu resolvi ir morar sozinha.
Aluguei um apartamento charmoso, decorei tudo brilhantemente, chamei amigos para ainauguração, servi bom vinho e comidinhas feitas, claro, por mim, que também finalmente aprendi a cozinhar.
Resultado disso tudo: silêncio absoluto.
O tempo passou, eu continuei acordando e indo dormir todos os dias querendo ser mais feliz para ele, mais bonita para ele, mais mulher para ele.Até que algo sensacional aconteceu...
Um belo dia eu acordei tão bonita, tão feliz, tão realizada, tão mulher, que eu acabei me tornando mulher demais para ele.
Ele quem mesmo?

Sou eu assim sem você

Bruna Demaison

Foi em um bar, aquele onde todos iam. Ou foi naquela boate? Tempos depois você me chamou para sair, mas lá atrás já passávamos horas rindo e ignorando o resto das festas. Eu te achava tão inteligente que tinha até medo de falar alguma burrice!
Te adorar estava ali como o acordar, falar, viver. Tentei tanto e por tanto tempo te esquecer que desisti de tentar, e foi durante esse tempo que fui me esquecendo de outras coisas. Esqueci que não sabia dirigir. Esqueci de pisar na embreagem, engatar a primeira, soltar lentamente o pedal, colocar o veículo em movimento, ouvir o barulho do motor e nunca passar a quinta porque era difícil reduzir.
Quando lembrei, já estava fazendo como se sempre o tivesse feito. Ou como se tivesse aprendido a fazê-lo. Esqueci de sempre agradar. Logo eu, que chorava no banheiro da escola por ter sido repreendida, que tantas vezes me identifiquei com aqueles garotinhos que têm a merenda roubada pelos fortões, um dia me vi discordando.
O que é isso? Só percebi quando já estava emitindo uma opinião contrária em público! Eu, a rainha do “precisa buscar tia Maricotinha logo ali no Japão, você vai, querida?”. E as oportunidades imperdíveis? Esqueci de não perdê-las e perdi milhares durante esse tempo, quase matei de desgosto um bocado de gente e aproveito o espaço para me desculpar por tê-los feito sofrer tanto, quanta decepção, sinto desapontá-los.
Sinto uma enorme vontade de mandá-los longe! As expectativas eram deles, não pedi, era decepcionar lá ou cá e não percebi a virada ou teria anotado o passo a passo dessa mudança. No começo eu me desculpava e sofria, depois só me desculpava e depois nem sabia mais de culpa nenhuma. Esqueci que não sabia o que eu queria, e por não saber fui fazendo para ganhar tempo e nesse tempo ganhei sabedoria.
Nesse tempo não esqueci de ter dúvidas, colecionei um monte delas. Mas não em uma daquelas coleções em que os objetos ficam guardadinhos para admirarmos vez ou outra, eu as colecionei para soltá-las. Colecionei medos também, uma porção. A esses ainda sou mais apegada, esqueci foi de anotar a data de extermínio de alguns. E das certezas, dos preconceitos, de algumas idéias e outras decisões. Foi no seu aniversário, na festa que estava marcada na minha agenda há meses. Ou foi quando nos esbarramos na rua naquela tarde? Ainda não tinha me dado conta. Uma coisa estranha. Não fez mais calor ou frio, não repassei depois cada palavra dita. Reparei que seus olhos estavam envelhecidos como os do seu pai. Você sempre falou tão rápido? Não sorri muito porque... não sei por quê.
Minhas mãos não costumavam gelar? Em que momento... Eu tentei tanto e por tanto tempo que desisti de tentar, até que esqueci de lembrar de você e agora nem lembro de como era eu sem querer você. Acho que eu era assim. Você notou? Só agora percebi.
Algumas mudanças não acontecem sob tempestades, é uma brisinha leve que está sempre ali e um dia, sem nenhum sinal, ops! A duna andou. É isso? Que perigo.

Sacanagem

Esta é a semana dos namorados, mas não vou falar sobre ursinhos de pelúcia nem sobre bombons. É o momento ideal pra falar de sacanagem. Se dei a impressão de que o assunto será ménages à trois, sexo selvagem e práticas perversas, sinto muito desiludí-lo.
Pretendo, sim, é falar das sacanagens que fizeram com a gente. Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer, só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos. Não contaram pra nós que amor não é racionado nem chega com hora marcada. Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade. Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida merece carregar nas costas a responsabilidade de completar o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo. Se estivermos em boa companhia, é só mais rápido.
Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada "dois em um", duas pessoas pensando igual, agindo igual, que isso era que funcionava. Não nos contaram que isso tem nome: anulação. Que só sendo indivíduos com personalidade própria é que poderemos ter uma relação saudável. Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório e que desejos fora de hora devem ser reprimidos. Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis, e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto.
Ninguém nos disse que chinelos velhos também têm seu valor, já que não nos machucam, e que existe mais cabeças tortas do que pés. Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz, a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, frustram as pessoas, são alienantes, e que poderíamos tentar outras alternativas menos convencionais.
Sexo não é sacanagem. Sexo é uma coisa natural, simples - só é ruim quando feito sem vontade. Sacanagem é outra coisa. É nos condicionarem a um amor cheio de regras e princípios, sem ter o direito à leveza e ao prazer que nos proporcionam as coisas escolhidas por nós mesmos.

O medo do amor

Medo de amar? Parece absurdo, com tantos outros medos que temos que enfrentar: medo da violência, medo da inadimplência, e a não menos temida solidão, que é o que nos faz buscar relacionamentos. Mas absurdo ou não, o medo de amar se instala entre as nossas vértebras e a gente sabe por quê.

O amor, tão nobre, tão denso, tão intenso, acaba. Rasga a gente por dentro, faz um corte profundo que vai do peito até a virilha, o amor se encerra bruscamente porque de repente uma terceira pessoa surgiu ou simplesmente porque não há mais interesse ou atração, sei lá, vá saber o que interrompe um sentimento, é mistério indecifrável. Mas o amor termina, mal-agradecido, termina, e termina só de um lado, nunca se encerra em dois corações ao mesmo tempo, desacelera um antes do outro, e vai um pouco de dor pra cada canto. Dói em quem tomou a iniciativa de romper, porque romper não é fácil, quebrar rotinas é sempre traumático. Além do amor existe a amizade que permanece e a presença com que se acostuma, romper um amor não é bobagem, é fato de grande responsabilidade, é uma ferida que se abre no corpo do outro, no afeto do outro, e em si próprio, ainda que com menos gravidade.

E ter o amor rejeitado, nem se fala, é fratura exposta, definhamos em público, encolhemos a alma, quase desejamos uma violência qualquer vinda da rua para esquecermos dessa violência vinda do tempo gasto e vivido, esse assalto em que nos roubaram tudo, o amor e o que vem com ele, confiança e estabilidade. Sem o amor, nada resta, a crença se desfaz, o romantismo perde o sentido, músicas idiotas nos fazem chorar dentro do carro.

Passa a dor do amor, vem a trégua, o coração limpo de novo, os olhos novamente secos, a boca vazia. Nada de bom está acontecendo, mas também nada de ruim. Um novo amor? Nem pensar. Medo, respondemos.

Que corajosos somos nós, que apesar de um medo tão justificado, amamos outra vez e todas as vezes que o amor nos chama, fingindo um pouco de resistência mas sabendo que para sempre é impossível recusá-lo.

Desconstruções

Quando a gente conhece uma pessoa, construímos uma imagem dela. Esta imagem tem a ver com o que ela é de verdade, tem a ver com as nossas expectativas e tem muito a ver com o que ela "vende" de si mesma. É pelo resultado disso tudo que nos apaixonamos. Se esta pessoa for bem parecida com a imagem que projetou em nós, desfazer-se deste amor, mais tarde, não será tão penoso. Restará a saudade, talvez uma pequena mágoa, mas nada que resista por muito tempo. No final, sobreviverão as boas lembranças. Mas se esta pessoa "inventou" um personagem e você caiu na arapuca, aí, somado à dor da separação, virá um processo mais lento e sofrido: a de desconstrução daquela pessoa que você achou que era real.

Desconstruindo Flávia, desconstruindo Gilson, desconstruindo Marcelo. Milhares de pessoas estão vivendo seus dias aparentemente numa boa, mas por dentro estão desconstruindo ilusões, tudo porque se apaixonaram por uma fraude, não por alguém autêntico. Ok, é natural que, numa aproximação, a gente "venda" mais nossas qualidades que defeitos. Ninguém vai iniciar uma história dizendo: muito prazer, eu sou arrogante, preguiçoso e cleptomaníaco. Nada disso, é a hora de fazer charme. Mas isso é no começo. Uma vez o romance engatado, aí as defesas são postas de lado e a gente mostra quem realmente é, nossas gracinhas e nossas imperfeições. Isso se formos honestos. Os desonestos do amor são aqueles que fabricam idéias e atitudes, até que um dia cansam da brincadeira, deixam cair a máscara e o outro fica ali, atônito.

Quem se apaixonou por um falsário, tem que desconstruí-lo para se desapaixonar. É um sufoco. Exige que você reconheça que foi seduzido por uma fantasia, que você é capaz de se deixar confundir, que o seu desejo de amar é mais forte do que sua astúcia. Significa encarar que alguém por quem você dedicou um sentimento nobre e verdadeiro não chegou a existir, tudo não passou de uma representação – e olha, talvez até não tenha sido por mal, pode ser que esta pessoa nem conheça a si mesma, por isso ela se inventa.

A gente resiste muito a aceitar que alguém que amamos não é, e nem nunca foi, especial. Que sorte quando a gente sabe com quem está lidando: mesmo que venha a desamá-lo um dia, tudo o que foi construído se manterá de pé.

So slow the rain

Eu fiquei no fundo do bar, no meu oitavo whisky. Fiquei sentado sozinho, vendo as garotas dançando. Minha amiga Raquel se destacava com selvageria sensual. Não era novidade pra mim. Fiquei bebendo e pensando em como as pessoas são tristes e desamparadas. Alguma espécie de Deus apenas as colocou por aqui, sem nenhum conselho, um drink grátis ou uma promessa de um cartão postal no fim do ano. Ele apenas as colocou por aqui e as pessoas dançam como se expulsassem a devastação do seu convívio diário, do seu vulcão interno. Ele não nos avisou da insegurança, das palavras ditas com irresponsabilidade na noite escura. Ele não nos falou da solidão irrefreável. Ele sequer deu o tapinha sacana nas costas. Ele foi embora sem olhar pra trás e nos deixou por aqui, irrecuperavelmente amaldiçoados. Então dançamos desvairadamente ou ficamos sozinhos no fundo do bar. Quando o segurança nos expulsou, nem tentei contra argumentar. Pedi um copo descartável, derramei meu whisky nele e fui embora, sozinho, do jeito que sempre me imaginei. Numa rua escura de um Rio de Janeiro excessivamente bonito. Engraçado como nunca me imaginei acompanhado. Ando por aí alguns amigos legais. Já namorei e já casei com mulheres estupidamente bacanas. Mas sempre me imagino assim. Sozinho, com as persianas fechadas e nenhum tipo de música. Só a geladeira roncando e a televisão sem som com algum desenho animado idiota. Alguma rua escura e a ameaça que vem do silêncio e do odor de lixo. Eu fiquei lá vendo o meu amigo Cadu chorar desbragadamente no meio do ensaio enquanto falava o meu texto da mulher que o deixou. Ele pedia desculpas e eu murmurava: “Vai aí, Brother, se não servir pra isso, pra que mesmo que serve?”
Quando fui embora do Rio de Janeiro, chovia. Uma chuva mais forte e mais fria que a chuva dos sonhos da noite anterior. Enquanto o táxi rodava triste pelas ruas do Rio, pensei em inquilinos indesejáveis, em torneiras pingando, em um presidiário lendo a bíblia e chorando por acreditar que Deus o perdoou. As placas molhadas de chuva não me indicavam caminho nenhum. Apenas orientava o motorista que parecia saber decifrar os seus códigos. Senti um calafrio quando vi o carro tombado no meio da rodovia. Fiquei imaginando se aquele cara pensava em morte segundos antes. Se ele assim como eu, sabia que dançamos pra não enlouquecer. Se ele assim como eu, pensa em garotas com nomes estranhos, em lugares onde a garganta fica tão seca e onde o coração aperta de um jeito incontrolável. Fiquei pensando que essas coisas são assim pra todo mundo, só que tem gente que nunca enfia a mão até o fundo do pote. Fiquei pensando que tem gente que só come as azeitonas que estão flutuando. Fiquei pensando que tem gente que tem certeza que é feliz. Por um momento, senti pena deles. Mas foi só por um momento.
Passamos a vida inteira ouvindo os sábios conselhos dos outros.
Tens que aprender a ser mais flexível, tens que aprender a ser menos
dramática, tens que aprender a ser mais
discreta, tens que aprender... praticamente tudo.
Mesmo as coisas que a gente já sabe fazer, é preciso aprender a fazê-las
melhor, mais rápido, mais vezes.
Vida é constante aprendizado.
A gente lê, a gente conversa, a gente faz terapia,
a gente se puxa pra tirar nota dez no quesito "sabe-tudo".
Pois é. E o que a gente faz com aquilo que agente pensava que sabia?
As crianças têm facilidade para aprender,
porque estão com a cabeça virgem de informações,
há muito espaço para ser preenchido, muitos dados a serem assimilados
sem a necessidade de cruzá-los: tudo é bem-vindo na infância.
Mas nós já temos arquivos demais no nosso winchester cerebral.
Para aprender coisas novas, é preciso antes deletar arquivos antigos.
E isso não se faz com o simples apertar deuma tecla.
Antes de aprender, é preciso dominar a arte de desaprender
Desaprender a ser tão sensível, para conseguir vencer mais facilmente
as barreiras que encontramos no caminho.
Desaprender a ser tão exigente consigo mesmo,
para poder se divertir comos próprios erros.
Desaprender a ser tão coerente, pois a vida é incoerente por natureza
e a gente precisa saber lidar com o inusitado.
Desaprender a esperar que os outros leiam nosso pensamento.
Em vez de acreditar em telepatia, é melhor acreditar no poder da nossa voz.
Desaprender a autocomiseração:
enquanto perdemos tempo tendo pena da gente mesmo, os demais seguiram em frente.
A solução é voltar ao marco zero.
Desaprender para aprender.
Deletar para escrever em cima.
Houve um tempo em que eu pensava que, para isso,
seria preciso nascer de novo, mas hoje sei que dá pra renascer
várias vezes nesta mesma vida.
Basta desaprender o receio de mudar.
Eu tava bebendo. Eu bebo todas as noites. E todas as madrugadas. Eu bebo muito. E eu tava bebendo com o meu amigo Negão. E ele tava tentando me decifrar e pensando que sabia o que tava se passando comigo. O Negão é um grande Cara. E ele pode pensar o que quiser. E eu respeito o pensamento dele. Mas ele não faz nem idéia. Ah, Brother, ele não passou nem perto. E eu bebo mais. E eu vou pra casa sozinho. Tem uma garrafa de Jim Beam aqui em casa que o Gruli me trouxe de presente de Foz de Iguaçu. E eu matei meia garrafa na madrugada de ontem. E eu tô olhando pro resto da garrafa agora. E eu sinceramente, não sei se vou acabar com ela agora. Eu não sei o que vou fazer. Eu tô ouvindo uma bela música do Zé Rodrix. O Zé Rodrix fez umas coisas legais antes de encaretar publicitariamente. Eu tô com o fone de ouvido. Eu tô escrevendo como um possesso. Como faço todas as madrugadas quando chego em casa angustiado. E eu não tô reclamando. Angústia não é exatamente uma coisa tão ruim assim. E eu entendo meu irmão Rubens K querendo ensinar sua gata a beber. E eu entendo a janela aberta. E eu nunca pensei em olhar pro outro lado da rua. Mesmo porque eu sei que do lado de cá é tão perigoso quanto o lado de lá. E eu não tô sequer procurando um lugar seguro. "Quando você vier morar comigo / não esqueça de levar o seu coração". Entendam o significado do que é "singelo". Mesmo porque eu já tentei explicar pra meia dúzia e fui rechaçado. Por isso eu escrevo peças de teatro. E poesia. E ando por aí, meio torto, meio esquizo. Eu queria voltar pra casa e fechar os olhos, e descansar. Mas eu sei que não vou. Eu sei que vou ficar por aí, com esse hellboy causando um estrago nas minhas entranhas. Eu sei que vai ter meia dúzia achando que podem falar o que quiserem, como se eu fosse tão simples assim. Posso não ser grande merda, eu sei que não sou mesmo, mas não sou exatamente tão simples assim. Então talvez eu mate a garrafa de Jim Beam olhando pela janela. Talvez eu recorra a Donavon Frankenreiter ou a Van Morrison. Talvez eu pense em sereias no alto do Empire State. Talvez eu pense em gorilas gigantescos na Ilha de Circe. Talvez eu não queira muito da vida. Minha filha tá nesse momento com suas aflições que são só dela. Eu queria abraçar minha filha e dizer : Isso não vai passar, menina. Isso só vai piorar. Eu sou um péssimo pai. Mesmo porque eu não vou perder meu tempo pintando o teto do quartinho dela com estrelinhas brilhantes. Quer saber? Jim Beam, você me parece um grande amigo.
Escrito por Mário Bortolotto

Pensando em você

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.
Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você – seria, seriam?
Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.
Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.
Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu, em Um Provável Devaneio

Mulherzinhas

DEPOIS DE DEVORAR MONTEIRO Lobato na infância, inaugurei minha pré-adolescência lendo o clássico “Mulherzinhas”, de Louise May Alcott, que contava a história de quatro irmãs que viviam na Inglaterra do século 19. Se fosse lançado hoje um livro com este título, não apostaria em seu êxito. Mulherzinha acabou virando sinônimo de candura, fragilidade e, por que não dizer, de uma certa patetice. Sabemos todas que chamar uma mulher de mulherzinha, no século 21, é ofensa mortal.
Somos mulherões. Algumas, pelo aspecto físico: são as voluptuosas que estampam as capas de revista e que não deixam dúvida sobre o merecimento do superlativo. Outras — a maioria — são mulherões porque não vieram ao mundo a passeio. Trabalham duro dentro e fora de casa, não raro sustentam a família sozinhas e ainda reservam um espaço para a vaidade, nem que a vaidade se resuma a um batom catado na bolsa durante o trajeto do ônibus. Já escrevi sobre estes mulherões, mas nunca é demais lembrá-las, pra isso ao menos deve servir um dia internacional só para nós.
Dia da Mulher, na minha humilde opinião, tem a mesma importância do Dia da Árvore ou do Dia do Índio: serve para homenagens e reflexões, mas, na prática, não muda nada. Nem o meio ambiente é mais preservado, nem os índios são mais respeitados, nem as mulheres ganham melhores salários pelo fato de terem um dia só para si. O que muda alguma coisa nesta vida é postura, consciência e coragem. E, neste aspecto, fico feliz ao perceber que as coisas estão mudando pelo fato de que há cada vez menos mulherzinhas no mundo.
A mulherzinha é aquela que confunde delicadeza com resignação. Fala baixinho, com uma voz titubeante, como se tivesse que pedir licença para externar sua opinião — nas raras vezes em que tem uma. A mulherzinha tem o maior orgulho de ter suas contas — todas — pagas por um homem. Nunca cogitou experimentar alguma independência, mesmo que relativa. A mulherzinha não conhece assunto melhor do que novela, empregada e liquidações. E acredita que toda fofoca é inocente. Ela é um amor e ri o tempo todo, ninguém sabe direito do quê. A mulherzinha tem pavor de qualquer tipo de evolução — aliás, deve ter deixado escapar um “já foi tarde” quando soube que Betty Friedan faleceu. A mulherzinha enrubesce pelos motivos errados. E quase sempre acha charmoso fazer o papel de burra — o que diz tudo.
Tento me lembrar de quantas representantes do gênero conheço, e, ufa, quase não recordo de nenhuma. Talvez uma ou duas que ainda persistem em servir apenas como adorno da sociedade. São mulherzinhas muito queridinhas, muito boazinhas, muito sonsinhas, que adoram viver no encantado mundo do diminutivo.
Toda mulher já foi mulherzinha um dia, até que uma frustração aqui, uma descoberta ali, um caída de ficha, uma dor profunda, um aperto financeiro, uma longa viagem ou uma leitura impactante a fez acordar dos devaneios de cinderela e se tornar uma mulher ereta, firme, que responde por si própria. As que ainda precisam de atenção do Estado — e são muitas — precisam não por serem mulheres, e sim por serem excluídas e estigmatizadas, como vários homens também são — ou não?
Medos, ainda temos alguns. Natural. Mas entre eles já não está o de retroceder ao século 19, quando éramos muito românticas — ótimo, isto ainda deveria estar em uso — porém nada além de românticas.

A despedida do amor

Existe duas dores de amor. A primeira é quando a relação termina e a gente, seguindo amando, tem que se acostumar com a ausência do outro, com a sensação de rejeição e com a falta de perspectiva, já que ainda estamos tão envolvidos que não conseguimos ver luz no fim do túnel.

A segunda dor é quando começamos a vislumbrar a luz no fim do túnel.

Você deve achar que eu bebi. Se a luz está sendo vista, adeus dor, não seria assim? Mais ou menos. Há, como falei, duas dores. A mais dilacerante é a dor física da falta de beijos e abraços, a dor de virar desimportante para o ser amado. Mas quando esta dor passa, começamos um outro ritual de despedida: a dor de abandonar o amor que sentíamos. A dor de esvaziar o coração, de remover a saudade, de ficar livre, sem sentimento especial por ninguém. Dói também.

Na verdade, ficamos apegados ao amor tanto quanto à pessoa que o gerou. Muitas pessoas reclamam por não conseguir se desprender de alguém. É que, sem se darem conta, não querem se desprender. Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um suvenir de uma época bonita que foi vivida, passou a ser um bem de valor inestimável, é uma sensação com a qual a gente se apega. Faz parte de nós. Queremos, logicamente, voltar a ser alegres e disponíveis, mas para isso é preciso abrir mão de algo que nos foi caro por muito tempo, que de certa maneira entranhou-se na gente e que só com muito esforço é possível alforriar.

É uma dor mais amena, quase imperceptível. Talvez, por isso, costuma durar mais do que a dor-de-cotovelo propriamente dita. É uma dor que nos confunde. Parece ser aquela mesma dor primeira, mas já é outra. A pessoa que nos deixou já não nos interessa mais, mas interessa o amor que sentíamos por ela, aquele amor que nos justificava como seres humanos, que nos colocava dentro das estatísticas: eu amo, logo existo.

Despedir-se de um amor é despedir-se de si mesmo. É o arremate de uma história que terminou, externamente, sem nossa concordância, mas que precisa também sair de dentro da gente.

o fracasso como recompensa

prometo e não tomo providências
meu evangelho renegado por todas as manhãs
minha fuga dos restaurantes coreanos e dos suspiros forjados
tenho pensado insistentemente em constrangimentos noturnos
mas ainda acredito no que se convencionou chamar de suplicio
até fracassados tem códigos de ética
minha fé inabalável em possíveis viagens pra bem longe daqui
entre palmeiras e a brisa fria do fim de tarde
eu devo me deitar na solenidade da memória perdida
num quarto de hotel com nome exótico e reverente
a majestade de quem se deu por esquecido
de quem jogou fora todas as fichas
de quem sempre esteve fadado à derrota
mesmo sentado no topo do mundo
mesmo que ela dance semi nua na minha frente
que me ofereça sua nuca em sacrifício
e que derrame vinho em meu peito e deslize sua língua suave
ainda assim vou pensar que é sempre tarde demais
meu orgulho abençoado de perdedor
deixo o testamento de um loser
com duvidosa compaixão pela raça humana
como recompensa, tenho o sol abrasador
e a crença vil num evangelho porcamente escrito
só levo comigo minha inadequação e alguns poemas de Dylan Thomas
não tem mais pra ninguém

Daqui a 20 minutos, vai ser eu e Deus.

Relendo Caio Fernando Abreu

Meu nome é Caio F.Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada
Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.
(Caio Fernando Abreu - Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)

Se não era amor

“...Se não era amor, era da mesma família. Pois sobrou o que sobra dos corações abandonados. A carência. A saudade. A mágoa. Um quase desespero, uma espécie de avião em queda que a gente sabe que vai se estabilizar, só não se sabe se vai ser antes ou depois de se chocar contra o solo. Eu bati a 200 km por hora e estou voltando a pé pra casa, avariada. Eu sei, não precisava me dizer outra vez. Era uma diversão, uma paixonite, um jogo entra adultos. Talvez este seja o ponto. Talvez eu não seja adulta o suficiente para brincar tão longe do meu pátio, do meu quarto, das minhas bonecas. Onde é que eu estava com a cabeça, de acreditar em contos de fada, de achar que a gente muda o que sente, e que bastaria apertar um botão que as luzes apagariam e eu voltaria a minha vida satisfatória, sem seqüelas, sem registro de ocorrência? Eu não amei aquele cara. Eu tenho certeza que não. Eu amei a mim mesma naquela verdade inventada.”

UM LUGAR LEGAL PRA ESTAR (WHEN THE MUSIC STOPS)

Ela me disse casualmente
que havia notado a mancha de sangue na minha camisa
Disse a ela: Não se preocupe, não é nada
Ela respondeu: Eu não tô preocupada
Resmunguei: é melhor assim
Achei que podia me divertir um pouco
assistindo uma luta de boxe na tv
Tirei a camisa manchada de sangue e joguei no tanque
Ela vestiu uma micro-saia e saiu pra rua
Abri uma cerveja e resolvi esperar
Os ponteiros do relógio eram guilhotinas no meu pescoço
Quando ela voltou, não falei nada
Fiquei no escuro vendo ela se mexer
deixando cair sua saia
no caminho pro banheiro
Deixou a luz acesa e ouvi o barulho
não vou usar de eufemismos nesse momento
pra dizer o que ela estava fazendo
somos um casal com tempo de serviço
nossa indiferença mútua provava isso
meu enorme peso no sofá atestava isso
Ela acendeu um cigarro no escuro da sala
e a chama do isqueiro fez com que ela me notasse
"é mais difícil do que você imagina", ela disse
e o seu desprezo me acertou como um blefe de pôquer
Ainda ficou um tempo olhando pra mim
antes de vencer o orgulho e perguntar
"O que era a mancha na sua camisa?"
"Já disse. Não é nada. Não precisa se preocupar"
Ela soltou um foda-se e foi pro quarto,
deitou e ficou fumando olhando o teto
Levantei e fui até o banheiro
Cambaleei e tive que me apoiar na porta
Abri o armário e peguei o mercúrio cromo
ou você não sabia que a maioria das histórias de amor
terminam com alguém limpando as feridas?

Extremos da paixão

"Não, meu bem, não adianta bancar o distante lá vem o amor nos dilacerar de novo..."

Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira: compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó.O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya,ilusão,passatempo.E exigimos o terno do perecível,loucos.Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolosem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.
(in Pequenas Epifanias)