quinta-feira, outubro 11, 2007

Doces tragédias

Doces tragédias são aquelas que sofremos nos livros. São nossos choros de cinema, no conforto real da poltrona e pipoca. Quando a luz se acende, e a vida volta, vemos que tudo passa: o filme, o susto, a dor. Coisa boa é sofrer feliz.

Doces tragédias são os medos de criança. Bicho papão, sombra no teto, bruxa de fita K7. Medos cruéis que nos legam o mal da formação — virarmos adultos; essa gente besta que abre o guarda-roupa sem susto. E que ri se alguém tem medo do escuro. Não é do escuro; é das coisas terríveis que pinta neste pano preto a nossa imaginação. Por isso é que quando crescemos perdemos o medo do escuro: vai-se, na verdade, a imaginação.

Doces tragédias são as das canções. Do amor perdido, amor traído, das paisagens inúteis e dos boleros. Já conheço os passos dessa estrada, sei que vai minha tristeza e diz pra ela que vou voltar. Um tom menor é triste mas é bom: sofre sem sofrer. Canções são lágrimas de festim.

Doces tragédias eram as separações de Vinícius de Moraes. Primeiro porque eram as dele, e não as nossas. Segundo porque viravam poesia. Vinícius viveu num tempo em que coisas que não servem para nada, como a poesia, serviam para alguma coisa.

Percebi isso quando reli, recentemente, o Grande Sertão: Veredas. Todo mundo conhece a história. O sertanejo Riobaldo se apaixona por outro homem, Diadorim. Passa o livro inteiro encafifado pois “gostava de Diadorim de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”. No fim do livro, Diadorim morre. Só então Riobaldo descobre que Diadorim não era homem, era uma mulher, moça perfeita. “A Deus dada, pobrezinha”. Poucas páginas depois, surge o registro de batismo dela: “Em um 11 de setembro da era de 1800 e tanto...” Isso mesmo, um 11 de setembro.

Houve uma época de doces tragédias, quando o jagunço de tinta e papel descobria verdades de mentira. Esse tempo morreu. Diadorim morreu. Vinícius morreu. Tom Jobim também.

Mas eu ainda tenho meu medo do escuro. Envergonhado, mas tenho. E, quando acendo o abajur para dormir mais tranqüilo, a beleza daquele tempo volta a existir. Ele continua. Como diz Guimarães Rosa: “a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente”.

Publicado no Guia em O Estado de S. Paulo

André Laurentino

Um comentário:

Mme. S. disse...

Sempre uma agradável surpresa vir nesse espaço. Adorei o texto dos amigos. um abraço, sheyla.